MOUCO AMOR

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ouvido

Alfredo é mesmo um zero à esquerda. Desde o nosso casamento, ele coloca o rádio no máximo volume para não me escutar, mesmo nos momentos em que mais preciso dele.

Como uma vez, quando saí do trabalho e quis conversar sobre a minha cliente que tinha terminado o namoro. A coitada estava tão triste, mas, durante meu relato, Alfredo acendeu um cigarro e foi olhar as estrelas. “Você está me escutando?”, perguntei. Ele fez um “hu hum”. “Então o que eu disse?”. “Alguma coisa do namoro de uma tal de Dilma”. “Não, Alfredo, não. O nome dela é Vilma, e não Dilma”. Eu insisti “a Vilma está superchateada, o cara não ia ao cinema com ela há anos, acredita? E terminou o namoro um dia depois que a avó dela morreu”. “Que bom hein?”. ”Que bom? Você ouviu bem o que eu te falei?”. “Claro que sim. A Dilma, a avó, o namoro, o velório”, Alfredo continuava contemplando as estrelas.

A cada ano que passa, eu fico mais irritada. Ontem foi a gota d’água. Alfredo lia o jornal. Físico! Quem ainda usa jornal físico? Tenho a impressão de que, o fato dele tapar a visão inteira enquanto lê, livra de me olhar nos olhos. Cria uma espécie de escudo contra mim.

“Já deu comida pros gatos?”, indaguei. “Já”, ele virava a página do jornal bem devagar. “Já lavou a louça?”. “Já”, ele tragava o cigarro como se o prazer fosse sexual. “Já jogou o lixo fora?”. “Já”, pigarreou. Filho da puta. Não conseguia tirá-lo do sofá. Me deu um ataque de fúria. Arranquei o jornal da mão dele e o encarei. Alfredo ficou com olhar perdido, como se nem aquilo importasse. Continuou fumando seu cigarro até o fim. Pegou o cinzeiro para apagá-lo. Aí, num impulso, apanhei o cinzeiro e atingi a cabeça de Alfredo. Ele desmaiou, enquanto o sangue escorria e manchava todo o sofá.

Lavei a cabeça dele com água e sabão. Fiz pressão com o pano de prato e consegui estancar quase todo sangramento, depois o levei até o quarto. Não lembrava que era tão pesado, não tinha mais essa medida. Quando fazíamos amor, ainda tinha uma noção quando vinha por cima de mim, mas isso não acontecia há muito tempo. Pelo menos ontem ficamos abraçados, ele com os olhos fechados e os meus bem abertos. Tive saudade dos tempos em que nos amávamos.

Hoje finalmente, depois de anos, fomos passear juntos. Eu dirigindo. Milagre. Alfredo nunca deixou que eu assumisse o volante. Mas, confesso, o passeio não me deixou feliz. Ele insistia em não interagir comigo. Contei a história da nossa sobrinha de quarto grau, que tinha passado na faculdade, e ele nem aí. Sequer esboçou seu famoso “que bom”.

Minhas lágrimas escorriam a cada metro percorrido. E Alfredo num silencio sepulcral. Continuei meu percurso, queria muito ir à represa de Guarapiranga. Como ele não se opôs, aliás, nem opinou, como sempre, atravessei a cidade e finalmente estávamos lá.

Ele nem fumou durante o trajeto. Outro milagre. Eu o retirei do carro e arranquei sua roupa. Vi que ele não estava com tesão, por isso o levei para nadar. Alfredo continua em silêncio. Boiava. O vento o levava cada vez mais longe, quase sumiu da minha vista. Eu, sem fumar há quase vinte anos, acendi um cigarro. Sabia que Alfredo não me olharia nunca mais, muito menos me ouviria.

Pedro Fleury

“Retome o hábito da leitura. Contos impactantes. Textos com humor. Escrita de qualidade.”

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