Nunca vou me esquecer do nome dela. Gardênia. O cheiro realmente lembrava uma flor. Era garçonete no Piano Bar, perto da Praça da República.
Nos primeiros meses em que começou a trabalhar lá, andava com cabeça baixa, tímida, e com a gravatinha-borboleta sempre torta. O Wilmar, gerente, não perdoava a coitada, dava broncas homéricas.
Com o tempo, Gardênia foi se mostrando um mulherão, mudou a postura, andava com classe, os cabelos pretos passaram a ser bem cuidados, a maquiagem realçava seus redondos olhos negros e a sobrancelha grossa. Era o auge de seus vinte e dois anos.
Os frequentadores do bar ficavam em cima dela. Gracejos e cantadas de todos os lados. E Gardênia judiava, dava corda, mas, na hora h, dispensava os marmanjos com a maior tranquilidade.
Eu nunca tinha sentido nada por ela. Até que um dia…. bom, eu acabara de completar sessenta anos. Estava numa fossa desgraçada, foi na semana em que terminei meu casamento. Sentei no bar às sete da noite. Tomei seis vodcas-tônica, ali, sozinho, ao som do piano. Era fim de noite, os garçons se preparavam para empilhar as cadeiras e eu implorei pela última música, Verso Novo, do Cau Pimentel. “Quando o tempo ia apagá-la? Quando eu escreveria meu verso novo?”, pensei.
Gardênia me trouxe a conta. Solidária, passou a mão no meu ombro e me surpreendeu ao dar um beijo na minha bochecha. Senti pela primeira vez seu perfume. Talvez ali, naquele momento, tenha me apaixonado. E comecei a investir nela, durante meses.
Fui me aproximando de leve, sem me declarar. Fazia piada, mostrava interesse nas histórias que me contava, a acompanhava quase todo dia ao ponto de ônibus. Penso que esse pode ter sido meu erro… ser cavalheiro demais. Percebi quando me declarei. E ela “Laércio, acho que está confundindo as coisas… você é como um pai pra mim”.
Mais uma vez estava na fossa. Saí na madrugada à procura de algo mais do que o álcool para me consolar. Fui parar no Vagão, na Rangel Pestana. A par da pipoca murcha e do amendoim que já vinha mastigado, uma moça me chamou a atenção. Sabrina. Se dizia bissexual. Era bonita, sensual, pena que fumava demais. A voz já dava sinais, apesar dos meros vinte e cinco anos. Ficamos juntos naquela noite, por mais que o perfume de Gardênia não saísse da minha memória olfativa.
Sumi por um mês do Piano Bar. E fui à boate religiosamente três vezes por semana. Fiquei com mulheres diferentes, mas Sabrina era a mais divertida, acabou se tornando minha amiga, tanto que me abri com ela a respeito de Gardênia. Foi então que Sabrina deu a ideia de ir comigo ao Piano Bar para fazer ciúmes à minha paixão platônica.
Combinamos numa quinta. Dei uma ajuda de custo a ela, afinal perderia uma noite de trabalho para me ajudar.
Entramos de braços dados. Gardênia nos viu e abriu um sorriso. Veio me cumprimentar com um efusivo abraço e nos colocou na mesa perto do piano. Sabrina cochichou no meu ouvido “você tem motivos pra estar apaixonado”.
Pedimos uísque. Gardênia nos servia e olhava toda hora para nossa mesa. Meu plano estava dando certo.
Fim de noite. Esperamos Gardênia sair e a convidamos para ir a outro bar. Sabrina e ela tiveram muita afinidade. Quase com a mesma idade, falaram de todos os assuntos da geração delas. Me senti um pouco escanteado. Sequer me olhavam. Fui ao banheiro me aliviar e quando voltei vi a cena arrebatadora: o maior beijão entre as duas.
Fiquei sozinho naquele bar até as cinco da manhã. As duas pegaram um taxi. O rumo eu não sei… mas imagino. Nem para me convidar!
Nunca mais vi Sabrina, nem Gardênia. Chegando aos meus oitenta anos, me resta lembrar do seu perfume, da sua beleza, do seu jeito. Diferente do Verso Novo, o tempo não te apagou, Gardênia. Confesso que não deixo de praguejá-la, já que agora tem idade para alguém lhe dizer que “está confundindo as coisas” e que “é como uma mãe”. Que a velhice seja cruel com você, Gardênia!