Não repare na bagunça policial, disse a viúva chorando ao abrir a porta de sua residência. Lamento pelo ocorrido, preciso que responda algumas perguntas, tudo bem?, ele indagou enquanto observava a antessala da mansão. Claro, claro, ela limpou o nariz com o lenço branco que segurava na mão esquerda. Loreto di Marchi era do departamento de homicídios, fora designado para investigar o suposto suicídio do milionário da avicultura Joziel Silva. A viúva prestou depoimento dizendo que, mesmo estando em casa, não ouvira o barulho do disparo que atingiu o lado direito da cabeça do marido. Então, o caso começou a ser investigado pelo departamento de Loreto di Marchi, grande especialista em perícias e crimes não desvendados. O senhor aceita um café?, Donatela, a viúva, perguntou. Sim, por favor, puro, sem nada. O casal havia se conhecido num restaurante na capital paulista, ele, um sujeito de família humilde, não tinha gostos refinados; ela, de família tradicional, cresceu com todos os luxos até a empresa do pai quebrar, era uma ex-rica, que vivia de aparências. A senhora deveria aproveitar, o senhor Joziel tem muito, mas não tem gosto pra gastar, talvez falte uma mulher feito a senhora, de fino trato, aconselhou o maitre. A descensão da socialite havia feito com que ela frequentasse bares e restaurantes à procura de homens para sustentar seus hábitos caros. O maitre era um dos que brifava os ricaços a ela e ganhava uma gorjeta generosa quando os encontros davam certo. Entre olhadas e sorrisos, o capiau a convidou para se sentar. A sedução da linda mulher de olhos verde e decote generoso pegou o empresário de jeito. Não demorou muito para a aproveitadora laçá-lo num matrimônio que aconteceu em menos de três meses após o primeiro encontro. Ele estava de quatro por ela. Joias, champagne, viagens, casa em Paris, Donatela conseguiu tudo o que quis, apesar de sentir nojo de beijar e fazer sexo com ele. Fingia bem… em especial o orgasmo. Ele acreditava piamente que sua mulher gozava em todas as transas, pensava ser o super-homem na cama. Senhora Donatela, vocês estavam com problemas no casamento?, questionou o investigador. Não, não… a gente se amava, aliás vou amar meu Jozi pra sempre, ela colocou as mãos no rosto soluçando. Engraçado…, di Marchi falou coçando a cabeça. O que é engraçado, investigador? Fui atrás de alguns documentos e vi que ele te tirou do testamento há dois meses. Donatela se desesperou. O quê? Ele fez o quê? Te tirou do testamento. Aquele filho da puta, não estou acreditando, a socialite engrossou a voz. Pois acredite, aliás, ele não passou nada pro seu nome, nem uma casa ou carro ou quadros ou vasos ou obras de arte. Donatela se sentou na escada e acendeu um cigarro de filtro branco enquanto passava compulsivamente a mão nos cabelos. Não pode ser, não pode ser, ela dizia olhando para o chão, pelo menos ainda tenho as joias. Sinto muito, senhora, mas ele também cuidou disso, deixou muito claro no testamento que as joias não são suas, documentou todos os recibos em nome dele, as joias vão ser leiloadas e o dinheiro revertido a uma ONG. Espera, caralho, ele não pode ter feito isso. Pois é, talvez ele não te amasse tanto assim. Donatela teve um surto e começou a quebrar tudo o que via pela frente. O investigador assistia a tudo fumando uma cigarrilha com cheiro de baunilha. Acabou o show? Donatela mudara a feição após a galhofa de Loreto di Marchi. Olha aqui, seu filho da puta, você não pode vir à minha casa e cagar na minha cabeça, entendeu? Ele apenas olhou no relógio, sem se abalar com o insulto. Senhora Donatela, está evidente sua participação nesse crime, com todo respeito, é melhor confessar e fazer um acordo com a justiça, talvez consiga encurtar sua estadia na cadeia, agora por favor, economize meu tempo e o seu, comece a falar a verdade. Ela olhou fixamente ao detetive, parecia transpirar ódio. Saia da minha casa, já! Tecnicamente a casa não é mais sua, sinto muito, o oficial de justiça deve estar chegando pra te despejar. Filho da puuuuta! Senhora, pragueje seu marido e não eu. Donatela parou por alguns segundos. A empregada! O corno devia estar comendo a empregada, pra quem ficaram os bens? O investigador tirou um papel do bolso e consultou as anotações. Deixa eu ver… a casa ficou pra caridade, os outros imóveis também, as obras de arte também… enfim, acredito que tudo tenha ficado pra caridade. Não é possível, não é possível, nãoooo, ela gritou, as joias, eu vou pegar as joias. Advirto que se você tirar alguma coisa da casa vai ser presa em flagrante. Donatela andava de um lado ao outro. Já sei, investigador, já sei… posso dividir com você, meio a meio, o que acha? Senhora, não fale isso de novo, está cometendo crime de corrupção ativa, vou fingir que não ouvi. Para com isso, investigador, quanto você ganha por mês? Cinco mil, sete mil? Só um dos anéis que tenho lá em cima vale cem mil reais, no total deve ter uns cinco milhões de dólares em joias, você vai ficar rico. Chega, senhora, você está presa em flagrante, vou chamar a viatura. Seu merda, cuzão. Senhora Donatela, cheguei ao meu limite, mais um crime, desacato. Ele sacou as algemas e a dominou, torcendo as mãos da socialite para trás enquanto ela esperneava. Filho da puuuuta, não sabe quem eu sou, sou Donatela Fioretti, meu pai era o rei do mármore nessa porra desse país. Que bom, querida, agora você vai ser a princesa da prisão. Ela se contorcia urrando como um animal enjaulado. Em minutos, uma viatura da polícia militar apareceu e a conduziu presa ao Distrito Policial.
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Boa tarde, senhor Joziel, é um prazer. Sente, investigador, disse apontando a cadeira em frente à mesa do escritório. Você foi muito bem indicado pelo doutor Marco Antonio, meu advogado, preciso de ajuda. Claro, vai ser um prazer ajudar o senhor. Vou ser direto, tá? Minha mulher está trepando com o jardineiro. Sinto muito, falou di Marchi. Se fosse só isso… além do jardineiro tem o piscineiro, o motorista, meu contador… enfim, a lista é longa, pensava que ela gostasse de mim, mas a vadia só gosta da minha grana, o capiau abaixou o rosto, mexendo numa caneta de ouro com a ponta dos dedos. Mais uma vez, sinto muito, senhor Joziel, só não entendi como posso ser útil. Quero armar pra ela, fingir que me suicidei, vou deixar um testamento, já providenciei doar tudo, tenho muito dinheiro no exterior e posso abrir mãos de alguns bens pra parecer real o negócio do suicídio. Vou deixar algum dinheiro no banco e doar tudo pra caridade, imóveis, obra de arte, carros. Já passei as ações da minha empresa pra uma offshore, alaranjei o mais importante. Vou fugir com a empregada, a Donatela que se foda, pode me ajudar com isso? O investigador acendeu a cigarrilha de baunilha, posso, claro que posso, o problema é que se o departamento descobrir vou acabar demitido e preso. Isso não vai ser problema, você nunca mais vai precisar trabalhar, vou abrir uma conta decodificada em Isle of Man, é impossível de rastrear. O empresário escreveu num pequeno pedaço de papel e mostrou a Loreto di Marchi, essa quantia pode te dar uma bela aposentadoria. Aceito! É um prazer fazer negócio com o senhor, o investigador esticou a mão, cumprimentando Joziel.
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O laudo necroscópico atestou a entrada do projétil pela direita do crânio de Joziel Silva, traspassando o cérebro, com saída da bala do outro lado, a causa mortis era óbvia. A identificação foi realizada pela arcada dentária e digitais, sem sombra de dúvidas o cadáver era do empresário. Loreto di Marchi entrou na sala de perícias, e aí, doutor Ângelo, não foi suicídio né? Não, meu caro, tudo indica que ele foi morto. Diria até que é óbvio demais o homicídio. Eu suspeitei… vou puxar o caso pro meu departamento, quero investigar bem isso, é quase certo que foi a viúva.
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Foram ouvidos o jardineiro, o piscineiro, o motorista, o contador e a empregada. O menos suspeito de todos era o piscineiro, não conseguia formular uma frase, era magrinho, tímido, di Marchi até pensou na hipótese do sujeito não ter sequer transado com Donatela. Descartado pela equipe do investigador. O motorista e o jardineiro eram másculos, sem dúvida haviam visitado o quarto da viúva, porém não tinham envolvimento com o crime, o departamento de homicídios igualmente os riscou da lista de suspeitos. O contador era o alvo, inteligente, tinha todos os esquemas financeiros de Joziel. Loreto di Marchi conseguiu documentos capazes de comprovar que o contador rastreara os bens do empresário no estrangeiro. Bingo! Havia motivação: matá-lo para pôr as mãos no dinheiro. A empregada tinha um dos corpos mais lindos que di Marchi jamais havia visto. Não à toa o capiau queria fugir com ela, comentou com o escrivão de polícia. No fim, foi indiciado o contador, as provas indicaram para sua participação no homicídio, o mandado de busca e apreensão foi cumprido e a equipe de di Marchi encontrou uma arma compatível com o calibre disparado na cabeça de Joziel Silva. O juiz decretou a prisão preventiva, os investigadores acabaram de prender o filho da puta, anunciou o escrivão. Caso encerrado, disse di Marchi. A viúva se livrou da acusação, ficou sem nada e acabou voltando à rotina dos bares e restaurantes. Sugiro aquele ali, senhora Donatela, novo rico, acertou na megasena acumulada, afirmou o maitre.
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Aceitam champagne?, perguntou a aeromoça que servia a primeira classe do voo da British Airways São Paulo-Londres. Claro que sim, não vê que a taça está vazia?, respondeu di Marchi. Ao seu lado uma mulher com um corpo escultural beijou sua boca de forma lasciva e passou as mãos num colar com grandes diamantes cravados. E agora as joias são minhas, sem ter que trepar mais com aquele nojento, disse a ex-empregada/amante de Joziel. Viu só, Loreto, saímos com o dinheiro do acordo, com as joias e todos os bens desviados. O contador levou a culpa e nós vamos aproveitar nossas eternas férias. Te amo, meu amor. Di Marchi apertou a bunda da moça enquanto pensava na paz que estava sentindo, rico e aposentado da polícia.
*Publicado originalmente na Antologia “Detetives” da DarkBooks Coletâneas.