Sempre me chamaram de esquisito na fazenda. Por mais que tenha sido nascido e criado na roça, meus hábitos eram diferentes das outras crianças. Sentia-me preso lá, não encontrava meu lugar no mundo. Meu escape era os animais, gostava muito de estar com eles. Na família das galinhas, dei nome a todas elas: galinha-mãe Rita, galo-pai Zezinho e galinhas-filhas Geisa, Gisa e Gorda; na família dos pavões também batizei cada um dentre os doze lindos animais; mas os que mais gostava, sem dúvida, eram os irmãos porquinhos, Rabicho e Rabicó.
Quando voltava das aulas da professora Zilá, no barracão improvisado na fazenda, a primeira coisa que fazia, depois de pedir a benção de mamãe, era correr até o chiqueiro e conversar com os meus grandes amigos porquinhos.
Eles ficavam felizes em me ver, eu os abraçava e beijava, deitava no chão enquanto faziam a maior festa se esfregando em mim. Certa vez um deles até me passou olho-de-peixe, que brotou na sola do meu pé, tal era nossa intimidade.
Improvisei duas coleiras com cordas e pedaços de saco de ração, que coloquei no pescoço deles para não machucar, e saí cantarolando pela fazenda. Não consigo expressar a felicidade dos bichinhos, sentiram um quinhão de liberdade fora do cubículo no qual viviam.
Meu pai passava a cavalo e não achou nenhuma graça naquilo. – O quê tá fazendo, moleque? Leva ‘esses porco’ pro chiqueiro já! – Eu fui voltando desanimado, meus amiguinhos estavam tão felizes. Mais uma vez gritou: – Moleque fresco da porra, se te pegar fazendo isso de novo vou largar a cinta no seu lombo.
Puxa vida. Não tinha feito nada de errado, só levei os porquinhos para darem uma volta. Queria ser igual a eles, sempre radiantes, com aqueles rabinhos encantadores e as bundinhas rechonchudas balançando. Só lhes faltava a liberdade… e a mim também.
Uma semana depois, senti tristeza nos irmãos Rabicho e Rabicó. Quem vive a liberdade uma vez, não quer voltar à prisão. Eu não podia deixá-los lá, cabisbaixos. Não tive dúvida, tornei a sair com eles, dessa vez escondido por entre o estábulo, dando oi ao casal de cavalos Ana Raia e Zé Trovão.
– Ah, moleque encrenqueiro da porra! – O berro ecoou e fez gelar minha espinha. Papai estava abaixado consertando uma tábua solta. Fui pego no flagra, já imaginei a cinta descendo nas minhas costas.
Apanhei naquele dia. E toda vez que derrubava uma lágrima, apanhava mais. – Chorar é coisa de moleque frouxo, Bastião. Vai aprender a obedecer seu pai. – Ele só parou quando saiu sangue. Doeu pra burro!
Quase um mês se passou e Rabicho emagrecia cada dia mais. Estava acossado pela depressão. Os olhinhos transpareciam o sofrimento do cárcere. Rabicó parecia consolá-lo, era mais corajoso, talvez pela personalidade forte. Até a galinha Rita parava de ciscar após o almoço em condolência ao porquinho. Pedi a Nossa Senhora Aparecida por sua saúde, porém os dias passavam e os quilos iam junto.
Estava decidido. Fugiria com os dois. Viveríamos em liberdade plena, faríamos fogueira e comeríamos doces enquanto eu lhes contaria estórias de terror. No caso, pensei nos três porquinhos e o lobo mau, mas talvez os impressionasse demais. A loira do banheiro ou fantasma da estrada estaria de bom tamanho.
Esperei a noite chegar, meus pais dormiam cedo, pegavam no batente antes da cinco da manhã. Na trouxa pus apenas o essencial: três pães, se sentíssemos fome no caminho, lanterna e coberta para nos agasalhar antes de montar a fogueira. Devidamente encoleirados, nos pusemos a caminhar – sem rumo, é verdade – pela estrada vicinal de terra. Ia assoviando baixinho, apenas para acalmá-los. Aquilo era muito novo para eles – e para mim também – sair de madrugada, apenas à luz da lua.
– Ah, moleque desgraçado da porra! – Estou morto, logo pensei. Dessa vez papai não perdoaria, estava atrás de mim com uma ripa na mão.
Meu corpo ficou todo marcado da surra, me escorei no canto do quarto, agachado esperando, sem chorar, a dor passar – confesso que chorei um pouquinho quando meu pai não estava olhando.
Amanheceu na fazenda e acordei com um barulho infernal. Um grito diferente e incessante. Olhei pela janela e vi meu pai enfiando um facão no coração de Rabicho, enquanto o bichinho urrava. Ouvi o porquinho morrer. E eu morri junto… de tristeza. Fiquei duas semanas quase sem comer, preso em casa de castigo, bebia água e me alimentava de pouca farinha com leite.
Aos poucos fui saindo, ainda visitava os animais, sempre com receio do meu pai. Passava o dia ao lado do meu amigo Rabicó que não via mais motivos para viver, havia perdido seu irmão. Nós dois estávamos definitivamente presos.
Pensei na nossa amizade, no quanto ele me fazia bem. Mas eu não podia ser egoísta, tinha que pensar, pelo menos, na liberdade de Rabicó, um de nós haveria de ser libertado. Abri a porta do chiqueiro e o toquei pra fora. “Vai, meu amiguinho, fuja daqui, seja livre”. O porco parecia não entender o que dizia. Acabou saindo bem devagar dali, fuçando como de costume. Aos poucos ia andando, em direção da estrada, como se não estivesse acreditando na oportunidade à sua frente.
Quando chegou na estrada, olhou para trás em direção a mim, com expressão de agradecimento. “Adeus, amigo”, acenei. Um barulho de buzina e… uma caminhonete passou por cima dele. Realmente, a liberdade não estava no destino de Rabicó… e no meu? Bom, eu continuo na fazenda, preso num mundo que não é meu, tentando, ao menos, libertar alguns animaizinhos, enquanto aguento as surras do meu pai.