O ambiente formal do Tribunal, aliado ao compenetrado corpo de jurados, o magistrado grisalho alocado acima do tablado de tacos e o crucifixo pendurado na parede compunham o cenário tenso daquela disputa. De um lado, Petrúcio Mangabeira, advogado; de outro, Paschoal Moraes, promotor de justiça; já estavam nos debates, a defesa finalizava a fala:
– … e, como dizia Pierre Cardin, não se deixe envolver pelas palavras da acusação, o réu é que merece compaixão dos jurados.
– Excelência, pela ordem, essa citação não existe, Pierre Cardin era estilista, não tem nada a ver com Direito, aliás, é a marca da minha gravata.
– Calma lá, doutor, essa frase foi corroborada por Amácio Mazzaropi no século dezenove.
– Excelência, o advogado só pode estar brincando… Mazzaropi era ator e cineasta, nem tinha nascido no século dezenove.
– Senhores jurados, o doutor promotor está tentando fugir da realidade, confiem no que digo, a misericórdia é a regra, conforme escrito no compêndio de Direito Penal por Gustav Klimt.
– Francamente, isso é um absurdo! Klimt nunca falou isso. Era pintor, e não jurista.
– Doutor, francamente digo eu, só porque ele gostava de pintar não podia entender de leis?
– Olha, eu faço júri desde mil novecentos e noventa e um, e nunca vi tamanho absurdo.
– É, caro acusador, então o senhor não conhece o grande tribuno com quem tive a honra de dividir o plenário algumas vezes: Luís Gonzaga Pinto da Gama.
– O que é isso? Alguma piada? Luís Gama morreu há quase cento e cinquenta anos. Excelência, vamos acabar com esse júri, já está ficando ridículo, data venia.
– Na realidade, Meritíssimo, todas as minhas falas foram para demonstrar a tamanha insanidade que esse julgamento representa. E falo isso com todo respeito. Está se processando alguém tão-somente por ter emitido um som. Isso chega às raias da loucura. Frise-se, a vítima estava na beira da janela para se jogar, o réu tentou evitar a fatalidade do único jeito que conhece, ou seja, com o ruído grave que sai de sua garganta, nunca teve intenção de contribuir para o suicídio. Jurados, ponham a mão na consciência. A defesa encerra com esse pedido!
Ao final de horas na sala secreta, respondendo aos complexos quesitos, o júri decidiu pela absolvição do réu. A comemoração foi efusiva nas galerias e o doutor Petrúcio Mangabeira ovacionado no fórum.
O acusado, por sua vez, saiu livre, sem coleira e latindo como se gritasse a liberdade. Aproveitou para deixar sua marca na repartição, levantando a pata direita bem na porta de entrada.