As lonas desgastadas se destacavam do lado de fora do circo. Na entrada, uma placa grudada à cerca indicava “capacidade para 250 pessoas”, nem de perto atingida durante a turnê do espetáculo. Na bilheteria, a simpática recepcionista, maquiada com brilho nos olhos, vendia a entrada a preços populares, com largo sorriso no rosto. Dois palhaços recebiam o público que chegava aos poucos… bem aos poucos… para ser preciso chegaram apenas onze pessoas à apresentação. “Sejem bem-vindo”. Nos bastidores, o velho palhaço, terminava de se maquiar, enquanto pitava seu cigarro de canto de boca. Estava cansado, setenta anos de picadeiro, enfisema, cardiopatia e uma bela hemorroida. O “palhaço Alegria” não mais fazia jus ao nome.
O espetáculo começou, o público comia pipoca e algodão-doce ansioso pelo que estaria por vir. “Respeitável púbrico, o show mais antigo da terra, o circo está na sua cidade”. Entraram dois malabaristas, um chegou derrubando duas das bolinhas com as quais fazia o número. O rosto não escondeu a decepção. Depois, o equilibrista… que desequilibrou… mas o narrador tentava manter a empolgação. “Cadê os aprauso?”. Os espectadores aplaudiam sem ritmo afinado. O show de mágica, apesar de pueril, arrancou alguns sorrisos. Já a contorcionista acabou se contundindo. Foi então que Alegria apareceu.
As costas doíam, a respiração ofegava e a hemorroida ardia. “Boa noite, criançada”, ele saudou, logo percebendo que havia apenas uma criança dormindo no colo do pai. “Olha, hoje o circo tá diferente, tem mais cadeira do que gente”, descontraiu.
O desânimo do público era evidente. O palhaço Alegria, por alguns instantes, parou e refletiu sobre o passado subversivo. Lembrou-se das galhofas no tempo do regime militar, das charges que fazia ridicularizando os generais vestidos de mulher e de cor-de-rosa. Voltou ao tempo das piadas sujas proibidas, em suas apresentações clandestinas nos bares quando caia a madrugada. Foi então que o velho palhaço resolveu fazer um número diferente aquela noite no circo….
Iniciou com uma anedota de impacto, sobre um casal tarado, emendou com a do pênis gigante, passou por outra de papagaio com palavrões escabrosos, chegando ao ápice quando contou uma clássica do Costinha. Suja. Bem suja. O silêncio tomou o ambiente, apenas ouvia-se os grilos do lado de fora das lonas. Alegria imaginou o circo fechando as portas. “Talvez tenha passado dos limites”, pensou.
Entreolhares. Um riso. Uma gargalhada. Aplausos efusivos das onze pessoas que assistiam o espetáculo. O velho palhaço sentiu novamente o prazer de se apresentar, o orgulho de ser artista, a felicidade em ouvir aplausos sinceros depois de tantos anos. Não se conteve e desceu do picadeiro num salto só, torcendo o tornozelo num barulho perceptível. “Que se foda”, ele gritou colocando os braços para cima em comemoração ao sucesso de sua subversão. As aclamações ficaram ainda mais fortes.
No trajeto, carregado pela maca dos bombeiros até a saída do circo, continuava sendo cumprimentado pelos fãs. Sua última apresentação no picadeiro foi o que faltava a Alegria para completar sua aposentadoria compulsória, uma memória que levaria para seu descanso eterno após o ruído final do monitor dos sinais vitais. Alegria faleceu decorrente de um infarto a caminho do hospital com um enorme sorriso estampado no rosto, vibrando até o último instante seus momentos de subversão.