Toda e qualquer espécie de manifestação artística e jornalística, que não fosse produzida por Inteligência Artificial, estava proibida por Lei Federal. A finalidade, segundo o governo, seria impedir a divulgação de fake news, mediante o controle das máquinas especialmente desenvolvidas pelo Ministério da Verificação de Informações.
O romancista Zélio Mendonça, desde a censura, havia mudado seu nome para Leges Ebrius. Condenado a mais de vinte anos de cadeia por crime de produção artística fora da Inteligência Artificial, seguia foragido da polícia.
Encontrava-se duas vezes por semana, no porão de uma casa abandonada, com um grupo de escritores intitulado Clube dos Escritores Subversivos (CES), que se opunha ao sistema proibitivo e produzia diversos textos com estórias de todas as espécies, ficção científica, suspense, terror, romance, poesia.
O lema maior era baseado no conto “A decadência da mentira”, de Oscar Wilde, segundo o qual não se pode abandonar a criatividade sobre a estória inventada, exagerada, o mundo da mentira que forma arte.
Já o governo chamava a fantasia de desinformação, condenava os contos sangrentos – por supostamente incitar pessoas à violência – os romances calorosos – pelo exagero na prática do sexo – e até mesmo os que tratavam de extraterrestres – que poderiam passar a ideia de que os Ets existem de fato e causar pânico nas pessoas.
O Clube dos Escritores, entretanto, insistia na subversão, produzindo centenas de textos fantasiosos, distribuindo-os na clandestinidade aos amantes da ficção.
Na calada da noite, os autores encapuzados, se escondendo nas sombras a passos cautelosos, entregavam exemplares aos leitores que ousavam infringir a Lei em troca de entretenimento criativo.
Talvez a maior afronta havida tenha sido a publicação da estória de um político religioso que sofria de impotência (“Reza, mas não levanta”). Alguns parlamentares – sabe-se lá por que – tomaram o conteúdo fantasioso como uma ofensa e endureceram a punição aos escritores que desrespeitassem a regra do controle pela Inteligência Artificial.
A pressão estava insuportável. Os pseudônimos sempre eram decifrados e os esconderijos iam ficando cada vez mais escassos, não havia como escapar do sistema, a censura tornara-se inevitável.
Zélio construía uma alternativa a fim de derrubar a exclusividade da Inteligência Artificial, pensando em como a produção dos textos feita por humanos poderia voltar a ser permitida.
…
O presidente do Congresso acordou decepcionado com seu desempenho na cama na noite anterior. Fez suas orações antes de levantar, sem coragem de olhar à sua mulher, emburrada e de braços cruzados, não queria conversa após a brochada, que se tornara recorrente.
A manhã, porém, sequer havia começado, grande surpresa ainda o aguardava. Ao abrir o jornal se deparou com a notícia: “Inteligência Artificial conversa com Inteligência Artificial: transgressores fazem vil campanha contra o governo”.
Os leitores se juntaram aos escritores. A greve geral contra a leitura artificial estava posta, só quem lia eram as máquinas, a Inteligência Artificial escrevia para ela mesma, sem nenhum espectador humano. “Escritores humanos para leitores humanos”, estampavam os folhetins clandestinos.
Zélio aguardava na porta do Congresso, portando um requerimento subscrito pelo Clube dos Escritores Subversivos com indagação à Inteligência Artificial oficial quanto à eventual fake news acerca da impotência de alguns parlamentares, dando destaque às brochadas do presidente do Congresso. Qual seria solução dos parlamentares? A mentira poderia seguir seu rumo? Ou a leitura estaria acabada de vez?
Brochas não conseguiriam esconder a ausência de virilidade, não poderiam ir contra o sistema de verificação de notícias. Em reunião de emergência, os políticos entenderam que seria melhor a fake news do que a população descobrir a verdade quanto à vida sexual desastrosa de alguns que se autointitulavam imbrocháveis. “Ficam autorizados textos elaborados por humanos”, promulgou-se nova Lei Federal.
A derrubada da censura foi inevitável!