E EU, QUE SÓ QUERIA ESCUTAR UM SAMBA

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Samba

Choveu sem parar a noite toda, eram as águas de março que fechavam o verão, dormi bem, o barulho sempre me relaxa, costumo chamar de chuva de benção. Acordei com vontade de escutar um samba, o timbre de um tamborim ressoava em minha mente e o calor me permitiu sair de casa com um velho calção de banho, no fim de semana não deixo de vadiar, não gosto de compromisso. No caminho da padaria, a melodia se formava na imaginação, enquanto eu a assobiava. Encostei no balcão, pedi uma boa média e acendi um cigarro pra espantar mosquitos. Batucava com a ponta dos dedos na caixa de fósforos, não me importo de esperar, meu segredo é paciência e muita crença no Criador. As batidas da música, numa cadência bonita, continuavam no silêncio do meu interior… o samba me acalma, parece uma luz envolvendo minha alma… que vontade de escutar um samba. Paguei a conta sem me despedir, sou daqueles que parte sem dizer adeus. Já o malandro ao meu lado mal chegou e já anunciou a hora da partida, disse que defumou o corredor, consertou o ventilador e pegou um belo bronzeado pra receber a nêga no barraco, falou assim, em rimas, como se estivesse declamando… me aguçou mais a pretensão de sair de lá e procurar um samba pelo morro. Era cedo, nem meio-dia, mas no morro todo dia é dia, toda hora é hora, o povo aqui só canta, não chora, o samba faz parte de tudo, até um inocente sabe o que é sambar. Saí então contente, do jeito que a vida quer, dando a volta por cima de todos os problemas, com o objetivo fixo de ouvir um samba. Puxa, que surpresa, era o Arnesto descendo a ladeira, fazia muito tempo que não o via, foi ele quem me mostrou Vinícius de Moraes, o som de Jorge Ben e o rei do baião, Luiz Gonzaga. Após um longo abraço, me contou que estava indo numa feijoada com cerveja estupidamente gelada prum batalhão, disse que não me preocupasse, a dona da casa recebia todo mundo e, qualquer coisa, que colocasse mais água no feijão. Pedi desculpas por não o ter procurado durante tanto tempo, demorei pra me recuperar do dia em que passei por uma esquina e pisei num despacho, e ele, generoso, respondeu que a amizade nem mesmo a força do tempo pode destruir. Na subida até lá, vimos um sujeito caído na rua, não sabíamos se estava bêbado, descansando ou desfalecido, atrapalhava o trânsito, o sábado e o público. E não saía da minha cabeça o “bum bum paticumbum”, eu não via a hora de escutar um samba. Chegamos no barraco, a dona nos recebeu com um sorriso e um abraço negros que trouxeram a maior felicidade, entrem, aqui todo mundo bebe e todo mundo samba, já já chega o povo pra animar a festa, ela disse. E o compadre?, Arnesto perguntou. Ah, quem gosta da orgia, da noite pro dia não pode mudar, tá roncando na cama, chegou em casa outra vez doidão e brigou comigo sem nenhuma razão, respondeu indignada. Pediu um favor, que déssemos uma rebocada na parede do andar de cima antes do povo chegar, primeiro a laje, depois o feijão, sorriu, balançando uma garrafa de cachaça. Eu não sou muito do trabalho, mas a feijoada acompanhada de uma pinguinha valia o esforço, aliás, se cachaça desse cadeia, eu estaria preso pro resto da vida. Cada rebocada, uma golada na cerveja gelada, desceu bem, o corpo agradeceu. A polícia parou o ônibus com o pessoal do samba, pra dar uma geral, atrasou nossa feijoada. Chegou só o povo da farra, pegando copo pra se servir. E nada do samba, apesar de que já havia um grande conjunto tocando na minha imaginação. Quando o grupo chegou, a fome era tanta que a música foi obrigada a esperar, o cantor logo virou três tragos de uma vez, os olhos estavam marejados, a voz embargada, disse que não conseguiu superar o carnaval, ensaiou um samba o ano inteiro, sua amada jurou desfilar pra ele e acabou quebrando a promessa, na própria avenida chorou pela mentira da moça. O Arnesto, em sua quinta dose, consolava o rapaz, explicou que não há professor nesse mundo que ensine a matéria do amor, não há doutor que cure sua dor. O sambista contou que tinha loucura pela mulher e, não bastasse ter sido enganado, a encontrou nos braços de um tipo qualquer. Arnesto bateu nas costas do sofredor, o aconselhou a chorar, porque a dor dói de verdade, especialmente a dor de uma saudade, disse pra pedir ajuda lá do céu, mas perguntou: jura que não mereceu? O clima não estava dos melhores, a feijoada, porém, superou as expectativas… e eu sem meu samba… o porre foi generalizado, todos em solidariedade ao coitado do sambista. Entrou a noite, já passava das dez, e pensei “vou me pirulitar”. Resolvemos sair, o Arnesto e eu, ele já tinha exagerado, queria um tira-gosto pra rebater a bebedeira. Arnesto cumprimentou a imagem de São Jorge na entrada do bar, um guerreiro valente que cuida da gente que sofre demais, disse. Fui testemunha do que ele comeu… e do que ele bebeu… depois de se encher de feijoada durante o dia, na madrugada pediu testículos de boi, asa e moela, torresmo, bucho, morcela, jiló, maxixe e cará. O sono estava me vencendo, bastava de bebida pra mim… e até ali não tinha ouvido sequer um samba, apesar do ritmo estar tão presente em todo meu corpo. Vamos, Arnesto, chega, falei. Nem pensar, no Amarelinho é que eu vou terminar, respondeu, afinal ainda não me curei, falta tomar um rabo-de-galo, serve pra todos os males e todos os fins. A madrugada se foi e estava ficando de manhã, saí de lá carregando o Arnesto, que caiu no pileque. Ele apontou por entre as casas e disse: “a alvorada aqui no morro é mesmo uma beleza”. E eu, que só queria escutar um samba, percebi que a vida é samba e o samba é vida. Vivo o samba, viva o samba!

 

Pedro Fleury

“Retome o hábito da leitura. Contos impactantes. Textos com humor. Escrita de qualidade.”

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