ERA UMA VEZ… A VINGANÇA

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–Vamos brindar à nossa parceria, amigo – disse a figura peluda de olhos grandes e boca avantajada enquanto levantava a taça com um líquido avermelhado.

– À nossa saúde e ao azar deles – retribuiu o gorducho de nariz achatado e cabeça enorme.

As gargalhadas durante o interminável diálogo ressoavam pelo restaurante. O garçom trazia jarras atrás de jarras transbordando para o deleite dos recém-parceiros comerciais. A toalha da mesa ia cada vez mais se manchando de respingos que voavam durante os efusivos brindes.

– Sabe, Jack, meus dois irmãos e eu fomos expulsos de casa por nossa mãe alcoólatra. Desde então, tivemos as mesmas oportunidades, nos formamos em engenharia e fomos viver nossas vidas. Mas eles nunca quiseram trabalhar, eu não aguentava mais sustentar vagabundo. Te agradeço mais uma vez por ter tirado aqueles estorvos da minha vida.

Jack deu de ombros apertando sua mão.

– Aliás, amigo, não queria entrar nesse assunto, mas… falta a segunda parte do nosso combinado.

– Claro, está aqui – o cabeçudo arrastou discretamente uma maleta recheada de dólares a Jack.

– Foi um prazer fazer negócio com você – falou espiando o interior da valise com um sorriso nos lábios.

Os recém-parceiros comerciais haviam levado carne de porco para ser preparada pelo chefe de cozinha. De entrada, foram servidos cérebro cozido e linguiça de sangue e, como refeição principal, uma feijoada completa.

As caipirinhas chegaram junto com a comida e, uma após outra, o gorducho acabou ficando emotivo.

– Será que fiz a coisa certa, Jack?

– Claro que sim, amigo. Aqueles dois mereciam morrer. Vai por mim, faço isso há tempos. Alguns não conseguem se endireitar, nem com o passar dos anos. Aliás, já era pra eu ter acabado com eles muito antes de você me contratar. Lembra daquele episódio? Você acabou salvando os dois.

– Foi por isso que você acabou ficando com essa asma e tosse crônicas – ele riu.

– Não me esqueci disso – revelou Jack com bom-humor. – A feijoada está muito boa, não?

– Pois é. Heitor se descuidou bastante nos últimos anos e acabou engordando.

– Sim, sim. Eu percebi – Jack não parava de se coçar.

– Você está com pulga, cacete?

– É provável. Viver naquele mato no fim do mundo não é fácil. Quando vai me convidar pra passar uns dias na sua mansão?

– É só a gente ficar bem isolado um do outro, com uma porta de segurança nos separando e tudo bem, você está convidado.

– Ainda não confia em mim, amigo?

– Lógico que não. Esqueceu que já tentou me matar uma vez?

– Era só brincadeira, não ia fazer nada.

– Ahan… sei – ironizou.

O gorducho se levantou para ir ao banheiro. Jack olhou para os lados, como se conferisse não haver ninguém o observando, e despejou um pó branco na bebida do amigo. Logo o gorducho voltou limpando o macacão azul molhado na região da virilha.

– Não deu tempo. Acabei mijando na calça. Essa merda de roupa é complicada de desabotoar.

Jack expeliu bebida pela boca ao gargalhar.

– Seu porco. Não é grande demais pra se mijar?

– Acho que foi a caipirinha. Ou o sangue de entrada.

– Bom, vê se aprende a usar uma roupa normal. E tira esse boné ridículo.

– Eu estou careca, porra. Sinto frio no telhado.

– Bebe mais que passa.

O gorducho estava estufado. O corpo implorava por um tempo na comida e no álcool.

– Deixa eu me recuperar. Daqui a pouco eu pego pressão de novo.

Jack estava ansioso para saber se o fluoroacetato de sódio faria mesmo o efeito esperado. Afinal, não podia deixar viva a testemunha dos assassinatos por ele praticados.

– Então, uma cachacinha pra encerrar? Sei que eles têm uma aqui feita no interior, chamam de cachaça da casa. É branquinha. Dizem que já matou dois vigias – brincou.

– Em quinze minutos, ok? Está com pressa? Tem compromisso?

– Na verdade não. Amanhã vou comer aquela piranha. Sabe aquela da loja de doces?

– Sim, sim. É mesmo uma belezinha.

– Sempre gostei de mulher mais velha, mas estou num tesão naquela menina.

Por alguns instantes o gorducho ficou cabisbaixo e em silêncio.

– Jack, como foi com o Cícero? Ele era o meu favorito.

– Ah, cara. Sai dessa. Já foi.

– É sério. Eu preciso saber.

Jack respirou fundo.

– Foi rápido, tá legal? Praticamente indolor. Peguei o machado e “záz”. Bem no pescoço. Eu sempre deixo o machado afiado. Não tem erro.

O gorducho engoliu seco.

– Calma, cara. Relaxa. Nenhum dos dois sofreu, eu garanto. Vamos tomar aquela cachacinha?

Ele meneou a cabeça.

– Ótimo, amigo, ótimo. Garçom – levantou a mão – duas cachaças da casa, por favor – o funcionário fez sinal de positivo. – Agora quem vai ao banheiro sou eu – falou Jack se levantando.

Os copos estavam no balcão aguardando que fossem servidos. Jack se aproximou de maneira sorrateira e repetiu o processo de antes, derramando o pó branco num deles, o segurando com a mão esquerda enquanto pegava o outro com direita. Os levou à mesa.

– Agora sim, saúde, amigo.

– Saúde, Jack – o gorducho virou a dose em um só gole.

Em pouco tempo começou a se sentir estranho. A garganta queimava e a barriga doía.

– Não estou bem, Jack. Está tudo girando.

– Calma, amigo, vai ser rápido, relaxa – falou como se estivesse excitado.

– Você colocou alguma coisa na bebida, filho da puta?

– O lobo perde o pelo, mas não perde o vício – gargalhou Jack.

– Maldito! Tínhamos uma parceria. Você é um traidor – o gorducho segurou a garganta com as duas mãos, a sentindo derreter por dentro.

– Traidor? Eu? E você, Prático, não se sente mal praticando o canibalismo contra seus próprios irmãos? E ainda dizem que eu é que sou mau. Avisei que um dia ia me vingar. Finalmente acabei com os três porquinhos imundos.

Jack gargalhou compulsivamente ao ver que completara seu objetivo.

– Pode rir bastante, Jack.

Ele se arrepiou ao reconhecer aquela voz. Sentiu o perfume doce e não teve dúvidas de quem se tratava. Se virou bem devagar. Viu a velha senhora com um revólver apontado para sua cabeça. Ela tremia… não se sabia se pelo nervosismo do momento ou pela idade avançada.

– Então quer dizer que me largou pra ficar com a minha neta? – Enquanto a velha falava, a prótese dentária se movimentava dentro da boca.

– Não, eu… eu sempre te amei, meu docinho de côco – Jack suava.

– Não me chame de docinho de côco, seu patife – o tremor das mãos aumentou e perdigotos voavam da boca. – Responda à minha pergunta – gritou.

– Ela me seduziu, meu bem, eu juro – Jack colocou as mãos sobre olhos como se estivesse chorando.

– Pare de fingir, Jack. Não tenho mais idade pra jogos. Aliás… – fez uma breve pausa misteriosa – você nunca me satisfez – pela primeira vez, a velha riu. – O lenhador é muito melhor do que você.

Jack sentiu seu orgulho masculino ferido. Afinal, o lenhador era forte e atlético, enquanto ele estava um pouco fora de forma. Mesmo assim, quantas vezes havia satisfeito a velha nas madrugadas. Jack olhou com feição macabra à senhora:

– E a sua neta é muito melhor que você. Pele lisinha, libido em dia, cheiro de juventude. E você? Velha, enrugada, acabada, cheiro de naftalina. Às vezes sinto nojo… – POW, POW. Jack não conseguiu acabar seu discurso. Dois estrondos tomaram conta do ambiente, todos do restaurante correram e o garçom se escondeu atrás do balcão. A velha metera dois tiros na testa de Jack. Os miolos haviam se espalharam por todo lado. Ela deixou a arma em cima da mesa, se sentou na cadeira ao lado do corpo e alisou a perna cabeluda do amante.

– Eu te amei, Jack, mas é melhor assim. O lenhador também me faz feliz. Garçom – ela levantou a mão – uma cachacinha pra celebrar a vida – falou tentando mordiscar, sem sucesso, o torresmo que restava no prato de Prático.

Após tragar a bebida num só gole, pegou a maleta de dinheiro e saiu pensando: “Chega de bingo. Vou pra Las Vegas”.

Conto publicado originalmente na Antologia “ChaosPunk” da Editora Cyberus.

Pedro Fleury

“Retome o hábito da leitura. Contos impactantes. Textos com humor. Escrita de qualidade.”

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