FRITZ

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África

Nomugungé, África Central, 1580. A primeira caçada era o ritual de passagem para o menino se tornar homem. Apesar do tamanho e força, ele tinha apenas doze anos quando completaria a cerimônia mais importante da sua vida até ali. A caminhada pela floresta foi interrompida quando os poucos da tribo que ele acompanhava escutaram uma estranha aproximação. Pararam em posição de alerta com os instrumentos de caça em punhos e, de repente, se viram cercados por brancos munidos de armas de fogo. Os negros foram capturados pelo grupo de portugueses que explorava o centro da África. A expedição nem percebeu que ele era apenas um garoto e, mesmo que tivesse notado, não importaria, o via como mera mercadoria. A rota ao litoral demorou muitos dias para ser completada; amarrados pelas mãos e cintura, eram ameaçados ao longo do caminho. Chegando ao porto, a expedição comprou ainda mais negros, lotando o porão do barco, amontoando um a um como sacos de esterco. Não conseguiam ficar em pé, o compartimento não tinha nem um metro e meio de altura e os sufocou durante mais de mês de navegação. Dormiam encostados uns nos outros, não havia espaço sequer para se deitarem. Alguns não aguentaram a falta de suprimentos, morreram de fome e desidratados; os brancos, por sua vez, demoravam até três dias para dar conta dos corpos e só então os jogavam no mar. Quando a embarcação aportou no Brasil, se deram os leilões da mercadoria humana e o garoto fora arrematado por um fazendeiro, cuja propriedade se localizava na divisa entre Bahia e Minas Gerais. Lá ele ficava na senzala com todos os outros escravos, sendo que apenas três eram da sua tribo. Além da escravidão, sentia-se isolado pelos próprios negros, não participava dos rituais, nem das festas secretas, nem se integrava nas conversas. Sentia falta da sua cultura, da sua gente, da sua terra e nunca desistiu de fugir para voltar à África. Já mais velho, passou a ser um problema maior, ante as constantes investidas nas escapatórias… e apanhava a cada tentativa. Muitas vezes, quando nem fugia, sentia o peso do chicote por mero masoquismo dos seus senhorios. Certa feita, uma chibata nova chegou da Europa: tinha três bolas de ferro nas pontas com espinhos afiados; o lombo do escravo acabou servindo de teste para o instrumento; até os olhos do filho do dono da fazenda ficaram mareados vendo a cena e acabou compadecido, determinando que os funcionários parassem com a tortura; mas já era tarde, as marcas ficaram para sempre em suas costas, quase não se via pele… as pancadas a comeram por inteiro. Se tornara mais forte, mais alto, passou dos dois metros e vinte de altura e foi designado como segurança das filhas do dono da terra. Sua função era não deixar que pessoas estranhas se aproximassem. Chegou a tombar um cavalo com os braços quando um galanteador tentou abordar uma delas. Era fiel, mas sempre tentava fugir… e era castigado por isso. Tinha que ser vigiado muito de perto, dava trabalho para ser capturado. Foi então que o senhoril, ao analisar mais de perto seu biotipo, teve uma ideia: o alugaria aos fazendeiros da região como reprodutor; filhos com aquele físico poderiam dar lucros extraordinários, todos sairiam ganhando. Passou, então, a ser obrigado a se deitar com todas as negras das propriedades próximas, sendo observado de perto pelos capatazes para saber se completaria mesmo a tarefa. Anos de inseminação tiveram como resultado mais de seiscentos filhos e dinheiro no bolso dos que o alugaram. A fuga continuava sendo sua maior obstinação. Numa ocasião, ao observar o método dos fazendeiros para levar madeira de um lado a outro: colocavam os enormes troncos na corredeira do rio até que chegassem ao destino de forma rápida e barata. Pensou que sua liberdade seguiria o mesmo caminho dos troncos. Aliás, sempre imaginou que pela água voltaria para casa. O escravo conseguiu escapar da senzala; suava apreensivo enquanto corria em direção ao rio; olhava para os lados agachado no mato; pulou e se agarrou na parte detrás de um dos troncos, tentando de todo modo se segurar, evitando que a força da água o derrubasse; estava alerta ao movimento dos capatazes para que não o vissem; respirava num esforço tremendo e só pensava na recompensa que teria ao chegar em sua terra natal; escutou o latido dos cães, mas não conseguia percebê-los da posição em que se encontrava; levantou o corpo por cima do tronco com o fim de verificar se o perseguiam. O barulho das águas foi momentaneamente interrompido por um ruído seco… uma enorme tora de madeira o atingiu na coluna… ele sentiu uma dor lancinante e gritou bem alto… as forças se esvaíram… os ossos ficaram absolutamente destruídos… e desfaleceu levado pela correnteza. Em seu delírio, chegara à África; deu um abraço em sua mãe; viu seu pai com um grande sorriso no rosto; sentiu o cheiro da mata e ouviu águas calmas do riacho; sua tribo estava linda, as choças de palhas douradas reluziam como ouro; sentia uma paz interior indescritível, “finalmente em casa”, suspirou… acordou na beira do rio, expelindo a água que encharcou seus pulmões. Era arrastado por três homens brancos da fazenda que o chutavam, obrigando-o a se levantar… mas o corpo não mais o obedecia. Logo que perceberam a coluna quebrada, comentaram sua imprestabilidade. Que ficasse ali para morrer, afinal, era um negro e, portanto, sem alma. Agonizou por três dias inteiros, com o sol escaldando ainda mais sua pele e os animais o rodeando, aguardando a morte para devorá-lo.

São Paulo, Brasil, dias atuais. Ele comprova que a morte é apenas uma passagem e há muito mais além dela, é mera fase pela qual todos vão passar… várias vezes, aliás… tem orgulho de quem foi, da sua trajetória, do seu povo, da sua origem. Para quem não pode vê-lo e pergunta qual sua aparência, ele sempre brinca “sou lindo, loiro e de olhos azuis”, por isso o apelidaram de FRITZ, como é conhecido por todos nesse plano. Se emociona ao dizer que teve relação com inúmeras mulheres, mas nunca pôde ter um amor, nunca pôde olhar para um filho seu, foi usado como animal de reprodução, sem sentimento ou compaixão. Apesar disso, após a morte, adotou outros tantos e encaminha cada um conforme o acordo feito antes de virem para essa terra. E, acima de tudo, ensina que o amor é o que mais importa, além de sempre frisar: ninguém precisa ser bom, mas todos devem ser justos, lição que vem de toda injustiça que sofreu quando da sua existência terrena. A África ficou longe (apesar de eternamente em seu coração), as fugas não alcançaram o objetivo, as chagas são o exemplo da dor e sofrimento, e FRITZ, mesmo sem precisar, continua aqui, ensinando os seus, zelando pelos filhos e pela casa do Boiadeiro. SALVE ZAMBI, SALVE PAI FRITZ!

*em homenagem à comemoração da abolição da escravatura.

Pedro Fleury

“Retome o hábito da leitura. Contos impactantes. Textos com humor. Escrita de qualidade.”

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