MORTE AOS CANHOTOS

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Roma (Coliseu)

A repressão chegou ao seu auge naquela tarde de quinta-feira, quando as tropas cercaram a cidade, impedindo a saída de pessoas sem a devida verificação. Há semanas eu estava escondido na edícula de propriedade da tia Francesca. Além do medo, minha única companhia eram os biscoitos amanteigados que ela me servia todos os dias pela manhã junto com a garrafa de café. – A coisa vai melhorar, tenha força, Mario – ela repetia. Eu estava liderando o grupo de rebeldes que se insurgia contra o Movimento da Supremacia Destra (MSD), aquele que tomara à força o poder, substituindo o estado democrático. Os extremistas queriam impor a ideia de supremacia dos destros, em detrimento dos canhotos. Eu, canhoto, não podia aceitar. Aliás, os canhotos que se juntaram à luta estavam firmes na ideia de resistência. Não teve jeito. Uma delação de um vizinho fez com que minha fuga fosse imediata. Vaguei pelos becos de Trastevere, até chegar perto da Basílica de Santa Maria. Quase não havia mais lugares seguros em Roma. Fumei o último cigarro com minha mão esquerda – a mesma amarrada quando eu era pequeno e me forçaram a agir como destro, tentando me convencer o quão feio era ser canhoto. – Suava frio, estava esgotado e com vontade de desistir da minha vida transgressora. Acabei encontrando uma oficina abandonada, cuja porta estava arrombada e o acesso praticamente livre. O lugar estava saqueado e apenas materiais de pouco valor encontravam-se jogados pelos cantos. Não consegui descansar nem vinte minutos quando ouvi: Cercate quello stronzo. Comecei a sentir cada vez mais perto a sonoridade infernal dos passos dos soldados. Uma gota de suor percorreu por completo a linha da coluna e as pernas tremiam, refletindo meu desespero. Apanhei uma pequena serra que estava na prateleira e a apoiei sobre o punho esquerdo. Antes de iniciar a extirpação do meu famigerado título de canhoto, roguei ao nosso santo padroeiro: “São Bartolomeu, desgraçado, me ajuda!”. Assim que os dentes da serra começaram a cortar minha carne, passei a desconfiar que o santo não me ouvira. Achei que a dor não podia piorar, quando, então, senti a raspagem do osso.

O céu de Roma nunca amanhecera tão lindo. O ar parecia mais fresco, sem o peso exercido pela respiração das tropas. Ao menos para mim, um ex-infrator, a vida seguiria em paz. Entenda isso como um disfarce definitivo, pois não desistirei de lutar pela causa, afinal sempre haverá canhotos. E isso nenhuma ditadura poderá resolver. Mas resolver o quê? Não tem lógica discriminar alguém pelo simples fato de ser canhoto. E, por acaso, discriminação tem lógica?

 

Todos estavam apreensivos desde o rompimento da ordem democrática. A vida, tanto dos canhotos, quanto dos destros, mudara de forma abrupta. Evidentemente que os destros – como é o meu caso – apenas tinham incômodos leves, como as constantes abordagens para verificação da mão predominante; já os canhotos eram detidos e, em alguns casos, condenados à morte. Há dois meses, recebi a visita do capitão Giancarlo, do Movimento da Supremacia Destra (MSD) e comandante da operação de captura dos canhotos. – Bom dia, dona Francesca. Sabe quem sou eu, não? – apenas meneei a cabeça. – Pois é. Sei que o seu sobrinho Mario é líder dos rebeldes e está causando grande dor de cabeça pra gente. Temos suspeitas de que a senhora é cúmplice dele, posso prendê-la a qualquer momento – fiquei catatônica com a ameaça. – Entretanto, como sou justo, posso fazer um acordo para que isso não aconteça. Nos entregue o Mario, vamos detê-lo e vou convencer o general a não o sentenciar à pena de morte. A senhora pode convencê-lo a ficar uns dias aqui e, quando perceber que ele está relaxado e desatento, ligue pra gente, viremos imediatamente. Cumprida sua parte, nunca mais vamos te incomodar. – Não vi alternativa senão a de aceitar o acordo. Precisava salvar a vida do meu sobrinho. O convenci a se refugiar na edícula da minha casa, sem dar pistas de que o entregaria. Ele estava esgotado e extremamente agitado. Após algumas semanas, com muitos agrados e biscoitos amanteigados, observando seu estado mais sereno, deduzi que seria a hora certa de delatá-lo aos extremistas. – Tia, ouvi barulho na porta da frente – disse Mario observando pela cortina. – São eles, cazzo, são eles. – Com lágrimas nos olhos, não pude confessar minha participação na emboscada. – O vizinho deve ter feito uma denúncia, fuja pelo muro detrás – tentei amenizar minha traição. E lá foi ele, conseguindo se livrar da prisão, não sem antes me mandar um beijo carinhoso. – Te amo, zia. – Quando eles entraram, eu estava no chão, aos prantos. O sentimento de tristeza me esfolava por dentro. – Cadê o menino? – inquiriu o capitão Giancarlo. – Fugiu. Suspeitou da presença de vocês e fugiu. – Bugia, vecchia. Você vai no lugar dele.

Não pude mais ver o céu de Roma desde então. Aliás, daqui onde estou não consigo ver nada. Me arrependo e espero um dia poder de novo me comunicar com o meu menino. Eu era a única parente que havia sobrado da família, o porto seguro em que ele sempre pôde confiar e das poucas pessoas que não o discriminavam por sua condição. Depois de fuzilada, basta eu pedir a São Bartolomeu que cuide do meu canhoto favorito, meu doce Mario.

 

Finalmente havíamos tomado o poder. Os canhotos estavam sentindo nossa superioridade. As tropas estavam em êxtase ao ver como se curvavam ao poder dos destros. Àquela altura, porém, alguns rebeldes começaram a nos incomodar, em especial o tal Mario, canhoto nojento, que insistia em incitar a resistência. Elaborei um plano para capturá-lo. Fui à casa da tia, uma velha chamada Francesca, que logo se assustou com a minha presença. Propus um acordo: ela atrairia o verme e o entregaria, a não ser que quisesse ir presa no lugar dele e, quando o encontrássemos, o rapaz iria direto ao paredão de fuzilamento. Aliás, eu adoraria fuzilá-lo pessoalmente. A velha aceitou o acordo, trairia o sobrinho em troca da liberdade e da vida dele (acreditava ela). Nossa central delatória recebeu a ligação de Francesca algumas semanas depois. Chegamos à casa com cautela para não chamar atenção do rebelde, mas um dos meus soldados de confiança acabou esbarrando o fuzil no portão, causando ruído. – Porca miseria, Giuseppe, vai estragar toda operação. – Não deu outra, o procurado saiu em fuga. Além do barulho, desconfiamos que a velha tenha se arrependido e auxiliado na escapada. Vi uma bela oportunidade: prendê-la e usá-la mais uma vez para capturá-lo. A colocamos na cela mais suja, fedorenta e úmida do quartel, onde o cheiro de fezes humanas subia do ralo diretamente ao ambiente e roedores caminhavam pelos canos. – Ela não vai resistir, Giuseppe, vai delatar o sobrinho mais uma vez. – Dias após, já havia me cansado da teimosia da velha quando o serviço de inteligência localizou o rebelde. Estava sem o punho esquerdo, pelas regras do MSD não podíamos fazer nada contra ele. Não tínhamos provas a respeito de sua ligação com os rebeldes desde que extirpara seu membro e passou à nova condição de “não canhoto”. – Foi sua tia que te delatou e agora ela está presa. Já que você se regenerou, vamos soltá-la. – O rapaz ficou incrédulo: – Isso não pode ser verdade – gritou. Contei detalhes da casa e da conversa que tive com Francesca há alguns meses, inclusive descrevi o gosto peculiar dos biscoitos amanteigados. Mario percebeu que eu não estava mentindo. – Então pode matá-la, não preciso do amor de uma traidora. – Sorri e cumpri o desejo do garoto. – Sparare!

O odor de sangue pairava sob o céu de Roma. Uma centena de mortos e muitos detidos, os rebeldes não tinham mais a força de antes e Mario cansara de lutar. A supremacia destra havia vencido… não fosse o golpe que viria. Os ambidestros tomaram a cidade com armas de alta tecnologia. Agora preso, sei que nem São Bartolomeu vai me ajudar, de tanto que o profanei por ser o padroeiro dos canhotos. Perdemos a batalha… mas ainda não é o fim da guerra!

Pedro Fleury

“Retome o hábito da leitura. Contos impactantes. Textos com humor. Escrita de qualidade.”

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