MULHER DE MUITAS VIDAS

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Mulher Ana

Aquele dia estava especialmente difícil. Lelita, nascida Ana, trabalhava há semanas sem descansar. Visitava ao menos três clientes por noite, num ofício nem sempre prazeroso, encontros com homens asquerosos, desprezíveis, que davam vontade de vomitar.

Tinha que fazer uma pausa. Passou numa cafeteria antes de ir para casa se produzir rumo a mais uma noitada de trabalho. Fez seu pedido. Logo reparou numa estante de livros. Tinha paixão por ler, queria ser poetiza. Escolheu um de Cora Coralina. Sentou-se numa poltrona confortável e passou a folheá-lo, enquanto saboreava seu capuccino.

Lia num embalo frenético, rindo e se emocionando com palavras que falavam muito dela mesma, antes de ser Lenita, uma menina do interior de São Paulo, e quando se tornou Lenita, uma mulher da capital.

Sentiu um zunido nos ouvidos que foi aumentando… aumentando… até ela ser tragada para dentro do livro.

Estava numa espécie de vila, chão de paralelepípedo, com casas antigas, janelas e portas de madeira. Ao fundo, as montanhas cercavam a cidadela. Sentiu um cheiro diferente de fruta, lembrava manga. Viu uma árvore com frutos amarelos pequenos, não conseguiu decifrar o que era.

– Nunca viu pequi?

Lenita se virou. Uma velha senhora a olhava com um sorriso no rosto enrugado. Tinha o cabelo bem branquinho, penteado para trás, usava vestido estampado e uma bengala na mão direta.

– Pequi é típico da região do Goiás, fica uma delícia na galinhada. A fruta que tem o cheiro do serrado, como dizemos por aqui.

A garota a encarava ainda meio perdida. Não sabia o que estava fazendo ali e como chegara ao lugar.

– Que descuido o meu, nem me apresentei. Me chamo Ana. E você, querida? – indagou a velha senhora.

– Eu também me chamo Ana. Na verdade, faz tempo que só me reconhecem como Lenita.

– Muito prazer, Ana. Posso te chamar assim?

– Claro.

Elas se cumprimentaram com as mãos.

– Vamos dar uma volta? Vou te mostrar a cidade.

A garota anuiu com a cabeça. Andavam enquanto a senhora apresentava cada ponto do lugar. Passaram por uma ponte de madeira, em direção a uma igreja.

– Essa é a ponte da Lapa. Veja quantos sobrados, quantos telhados, quantas paredes vemos daqui. Olha lá as lavadeiras do Rio Vermelho. A gente sente de longe o cheiro gostoso d’água e sabão.

Lenita estava fascinada com a paixão da velha Ana por sua cidade. Tudo tão humilde, mas que falava tão alto no coração daquela senhora.

– Me diga, Ana, o que você faz da vida?

– Puxa… como posso explicar?

– Não tenha vergonha, querida. Apesar de ser uma mulher do século passado, trago comigo todas as idades, sem preconceitos.

Lenita sentiu muita afeição por ela e estava à vontade para revelar seu modo de vida.

– Eu sou prostituta. Paga as minhas contas, então não dá pra reclamar.

– Ah, veja só. Escrevi um poema sobre isso:

Mulher da Vida,

Minha irmã.

De todos os tempos.

De todos os povos.

De todas as latitudes.

Ela vem do fundo imemorial das idades

e carrega a carga pesada

dos mais torpes sinônimos,

apelidos e ápodos:

Mulher da zona,

Mulher da rua,

Mulher perdida,

Mulher à toa.

Mulher da vida,

Minha irmã.

– Que lindo. A senhora é poetiza?

– Na verdade, sou mais doceira que poetiza.

– Meu sonho é ser poetiza.

– E por que não põe em prática?

– Não tenho tempo. Ser mulher da vida consome um bocado.

Uma breve pausa na conversa.

– Sabe, Ana, a mulher não precisa ser uma só. Pode ter todas as vidas. Dentro de mim, por exemplo, tem uma cabocla velha que benze quebranto e bota feitiço, uma mulher cozinheira, uma mulher do povo, uma mulher roceira, trabalhadeira, madrugadeira, analfabeta, de pé no chão, bem parideira. Até mesmo a mulher da vida, fingindo alegre seu triste fado… assim como você faz. Publiquei meu primeiro livro aos setenta e cinco anos. Você é nova, viva a vida que quer viver, minha querida poetiza. Apesar de ter adotado o nome de Cora Coralina, tenho orgulho de ser Ana. Volte a ser Ana e seja a mulher que te faça feliz.

Elas deram um abraço apertado.

Lenita acordou com o garçom a sacudindo.

– Ei, senhora, estamos fechando.

– Desculpe, acho que cochilei.

– Cochilou? A senhora até roncou.

– Entrei demais na leitura.

Ao sair do café, sentiu o cheiro do serrado. Lembrou do abraço de Cora Coralina.

Nasci para escrever, mas o meio,

o tempo, as criaturas e fatores

outros contramarcaram minha vida.

A partir dali tudo seria diferente. Saiu de lá Ana, a poetiza. Lenita havia morrido no Goiás.

 

* texto em homenagem à Cora Coralina

Pedro Fleury

“Retome o hábito da leitura. Contos impactantes. Textos com humor. Escrita de qualidade.”

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