Era novembro de 1962 quando recebi a notícia de que eu seria transferido para o presídio de Robben Island, onde um tal Nelson Mandela aguardava julgamento por incitar a desobediência civil no país.
Fiquei um mês trabalhando na outra ala, não tive o menor contato com Mandela, apesar de ouvir histórias de como ele vivia na cela e como tratava com amabilidade todos os funcionários. Até que fui designado para lá.
Eu, branco de olhos azuis, não havia sentido os efeitos do apartheid. Minha vida continuava, meu casamento era bom, meus dois filhos lindos, a comida me esperava à noite sempre quando chegava do serviço.
A primeira vez que me aproximei de Nelson Mandela, diante de tudo que contavam, esperava que tentasse me catequizar à sua doutrina de desobediência civil.
– Olá, você é o carcereiro novo? – me indagou.
– Sim – respondi.
– Seja bem-vindo.
O homem era calmo e discreto. Sorria para mim do fundo daquela cela minúscula. Sua altura e porte impressionavam, mas o que me chamou mesmo a atenção foram seus olhos serenos, que transmitiam paz.
Ele me dava bom dia todas as manhãs. Perguntava sobre minha família, se eu tinha irmãos, filhos, era realmente interessado pela minha vida, meus sonhos, meu futuro. Queria saber se eu estudava, quais minhas pretensões profissionais. E eu fui cada vez mais me apaixonando pela simpatia daquele homem, que todos diziam ser um terrorista perigoso.
Em outubro de 63, iniciou-se o julgamento de Nelson Mandela. A imprensa internacional noticiava tudo e o governo precisava afirmar sua autoridade, não podia permitir que ativistas vencessem o regime.
A serenidade do líder antiapartheid continuava. Após bastante tempo de convivência, eu acabei, pela primeira vez, falando de política com ele. A grande pergunta que fez e me deixou pensando durante dias foi: “Por que não pode haver uma sociedade na qual as pessoas vivam tranquilamente com mesmas oportunidades?”.
Eu torci por Mandela. Toda vez que voltava à prisão após as audiências, falávamos durante horas. Ele me explicava os fundamentos da desobediência civil e aonde queria chegar com isso. Entendi que não era sobre buscar a dominação negra, mas sim buscar a igualdade.
Em março de 64, ficou claro que a condenação de Mandela era inevitável. Nos bastidores, a decisão já havia sido tomada, no entanto aquele julgamento precisava parecer justo perante a comunidade internacional. Eu não podia deixar que aquele homem bom e justo fosse condenado por lutar contra o autoritarismo na África do Sul.
Passei a traçar um plano. Coloquei tudo no papel. Eu tiraria Mandela de lá, ajudaria na fuga do meu amigo. Conversei com três colegas do presídio, nos quais confiava, que se dispuseram a ajudar. Todos partilhavam das ideias do ativista e achavam injusta sua prisão.
Em maio de 1964, conversei com Mandela. Seria naquela noite. Tudo programado. Mas ele disse que precisava enfrentar o destino, fugir não ajudaria na causa, seria a prova de que o governo tinha ganhado. Se fosse condenado, dizia, que o mundo visse a injustiça acontecendo e, então, o regime do apartheid mostraria sua verdadeira face odiosa. Abortei o plano. Tarde demais. Fui delatado por um dos guardas. Traído pelo companheiro que fingiu querer a liberdade de Mandela.
12 de junho de 64. Último dia de julgamento. Nelson Mandela se defendeu perante o Tribunal: “Durante a minha vida, dediquei-me a essa luta do povo africano. Lutei contra a dominação branca, lutei contra a dominação negra. Acalentei o ideal de uma sociedade livre e democrática na qual as pessoas vivam juntas em harmonia e com oportunidades iguais. É um ideal para o qual espero viver e realizar. Mas, se for preciso, é um ideal pelo qual estou disposto a morrer“.
No mesmo dia, eu era condenado à pena de morte por alta traição à pátria. Estou na estatística dos executados pelo regime. Nelson Rolihlahla Mandela, libertado após vinte e sete anos de prisão, mostrou ao mundo os horrores do apartheid.
A história é linda. Mas humanidade é da guerra, do ódio, da ganância. O homem é o lobo do próprio homem. E o apartheid persiste no mundo.
Faltam Mandelas, sobram mazelas.