O MAR E O VELHO

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Mar e Velho

Ele já estava há oitenta e quatro dias sem pegar nada. Até o garoto, seu fiel ajudante de pescaria, havia mudado de barco, agora estava auxiliando outro pescador. Todo o vilarejo falava aos quatro ventos o quanto o velho Santiago perdera o talento para pescar, uns até diziam que seu barco estava amaldiçoado. Muitos não acreditavam nisso. Mas o fato era verdade. Sei disso porque eu mesmo o amaldiçoei, não queria que o velho entrasse mais em minhas águas. Quantas vezes contou vantagem, dizendo que havia vencido o mar, que pescava mesmo durante a mais perigosa tormenta. Ego? Sim, ele conseguiu ferir o meu. Acreditei que tanto tempo sem conseguir pegar um peixe o faria se aposentar, não me incomodar mais com sua arrogância. Ledo engano… o velho insistiu, não queria morrer com fama de pescador azarado.

Naquela madrugada aprontou o barco e o colocou na água. Levava um cantil e uma lata de atum, além da linha, arpão, cordas e os remos. A pele era castigada de sol, as mãos trêmulas não mais funcionavam como antigamente. Era nítida sua dificuldade até mesmo de subir no barco. Seria fácil para mim, nunca mais falariam da coragem do velho pescador, na história restaria apenas sua derrota para o mar.

Dei um pouco de esperança a ele, vários peixes voadores indicavam onde estariam os grandes. Pouco tempo de navegação e mandei direto à sua linha um enorme peixe, mais de cinco metros. Com certeza o bicho acabaria com ele, o velho não aguentaria as fisgadas.

Mais de três horas brigando, o animal volteava, puxando a linha mais e mais. Um puxão brusco e um vacilo do pescador. Sangue escorria sobre mim, a mão do velho fora cortada pela linha. Naquela altura, tinha certeza de que Santiago desistiria.

A noite chegou. Ele continuava lá, não parava de falar do tal garoto, lutava contra a força do peixe. Já eu aguardava, nem tão manso, o velho desistir, era evidente que o garoto não o encontraria, a linha não resistiria, o peixe fugiria e eu o tragaria assim que caísse nas profundezas dos meus braços ao perder sua consciência. Os acontecimentos eram iminentes. Eu emitia meus ruídos, ia aos poucos hipnotizando o velho, que vinha piscando, o sono o estava vencendo, não tinha mais atum para se alimentar. Minha paciência é infinita.

Um dia e uma noite se passaram. Ele rezava muito, falava com Deus o tempo todo. O desgraçado não desistia. Tinha pegado um pequeno peixe que o alimentava. Nem o sol o abalava, o velho era duro, a idade falava contra, mas ele perseverava. As estrelas se mostraram, a lua brilhava e o sol nasceu ardido, tudo dizendo a Santiago que era hora de voltar para casa. Entretanto, quem estava se cansando era o peixe. Maldito velho, eu precisava derrotá-lo.

Não teve jeito. Quando amanheceu, o peixe se rendeu, subiu à superfície e o arpão entrou direto pela cabeça. O velho olhava para mim como se zombasse. Amarrou o bicho para fora do barco com cordas, o peso era tanto que sequer conseguiu carregá-lo à embarcação.

Era minha vez. Mandei um tubarão feroz acabar com aquilo tudo. A brincadeira precisava cessar. O animal rodeou o barco, sentia o cheiro do sangue do peixe, seguia alucinado o rastro vermelho. Num primeiro bote, conseguiu fazer grande estrago. Mais um. Mais um. Vacilou na quarta abocanhada. O velho acertou o arpão no meio dos olhos. O tubarão afundou imediatamente levando o arpão com ele, ainda enfiado no crânio. Ao menos eu havia tirado a arma do pescador. Mandei mais um tubarão. Dessa vez o velho teimoso o espantou com o remo. Quando mandei outro maior, o bicho acabou por destroçar grande parte do peixe. O leme quebrou no impacto. Finalmente o pescador estava desistindo. Desnutrido e confuso, não tinha escapatória: viria a mim, as profundezas o engoliriam.

Inferno! Mesmo sem forças, remava como podia. Chegou a noite. As luzes de Havana estavam visíveis e num golpe de esperança, o filho da mãe ganhou incrível vigor. Remou, remou e remou como se tivesse vinte anos. E atracou.

O velho pescador se arrastou pelo píer e sumiu da minha vista. Quando amanheceu, só falavam do tamanho da carcaça do peixe preso ao barco. Santiago, mesmo morto após algumas horas em sua casa, era o assunto na vila, herói da população, exemplo aos pescadores. O garoto se sentou no píer e rezou pela alma do mestre, agradecendo pelos ensinamentos e exaltando sua glória.

Santiago havia me vencido.

 

 

*Inspirado na obra de Ernest Hemingway, “O velho e o mar”.

Pedro Fleury

“Retome o hábito da leitura. Contos impactantes. Textos com humor. Escrita de qualidade.”

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