A manhã estava ensolarada e o clima agradável. Osvaldo voltava do passeio no parque com seu enteado Enzo, rindo por ter vencido na disputa de bicicleta.
– Você é muito ruim, com quinze anos não consegue me bater na corrida.
– Pô, eu estou com o joelho ruim, não é justo – o garoto retribuiu às gargalhadas.
A relação entre os dois era sensacional, Osvaldo o criava desde pequeno, quando o pai fugiu com a faxineira e largou filho e mulher ao deus-dará.
Quando voltaram, Zulmira os aguardava com sanduíche de pernil e refrigerante gelado.
– Oi, amores, como foram?
– Acredita que o Enzo perdeu pra mim? Velho desse jeito e ainda estou em forma.
– Velho nada, Valdo, você só tem cinquenta anos, bonitão – ela o beijou após abrir um sorriso.
– O que acham da gente ir até Embu das Artes dar uma volta, olhar uns artesanatos, tomar um café? – Osvaldo indagou.
…
A cidade estava movimentada, eles andavam sem compromisso, olhando com calma a exposição artística a céu aberto. Osvaldo foi procurar o banheiro, entrou numa pequena rua onde havia um bar. Um sujeito com aspecto desasseado e roupas rasgadas o chamou, clamando para que visse seu quadro. Parecia acelerado, com uma feição de desespero. “Deve estar precisando de dinheiro”, Osvaldo pensou.
– Leva meu quadro, doutor, preciso divulgar minha arte – o homem gaguejava, empurrando a tela ao turista.
A pintura retratava uma mulher misteriosa, de pele muito branca, lenço vermelho na cabeça e tranças louras jogadas para frente. Parecia estar numa fazenda, seus olhos eram azuis e penetravam quem os encarava. Por poucos segundos, Osvaldo entrou em estado mental alterado, como se estivesse hipnotizado, sentindo um zumbido nos ouvidos. Voltou à consciência quase que imediatamente.
– Leva, moço, pelo amor de Deus – o homem suplicou.
– Qual é o preço?
A fala ficou acelerada:
– O valor é simbólico, pode levar por quanto quiser.
– Não tem como eu colocar preço na sua arte, diga quanto é.
– Dez reais… cinco… veja quanto pode pagar. Leva, doutor, leva.
Apesar do estranhamento, Osvaldo não tinha como recusar, o sujeito estava angustiado.
– Vou dar duzentos reais, ok? Espero que você faça bom uso desse dinheiro, que Deus o abençoe.
Assim que homem passou o quadro às mãos dele, caiu no choro.
–Calma, você vai vencer na vida – disse Osvaldo solidário.
– Sinto muito, moço… sinto muito – falou o rapaz, saindo a passos apressados.
– Sente muito pelo quê?
O homem correu e nem olhou para trás, sumindo por uma viela.
– Ei! – Osvaldo gritou, perdendo-o de vista.
…
No caminho de volta para casa, Osvaldo estava calado, pensamentos estranhos passavam por sua mente. Acabou entrando sem querer na contramão. “Valdo!”, Zulmira gritou. Ele, no reflexo, conseguiu virar o volante, tornando à pista correta antes de quase colidir com um caminhão.
– O que houve? – a mulher perguntou, enquanto Osvaldo parava no acostamento.
– Não sei. Acho que dormi por um segundo.
– Eu vou dirigindo, Valdo, passa pro meu lugar.
– Não, tudo bem, depois do susto estou mais que acordado.
…
Enzo e Zulmira entraram em casa. Osvaldo foi tirar o quadro do porta-malas. Ao olhar a pintura, teve uma sensação bem diferente daquela da estrada. Se sentiu em paz, feliz, aquele quadro parecia abraçá-lo, não precisava de mais nada… só daquela tela.
O pequeno escritório de Osvaldo ficava ao lado da escada. Havia reformado o depósito há alguns anos e lá colocou uma mesa de madeira, uma poltrona e abajur de leitura, além de uma estante de livros. Assim que passou pela porta, foi direto até lá e pendurou a pintura na parede. Da poltrona, podia contemplá-la. “Que traços perfeitos. Essa mulher linda, de olhos penetrantes, está me protegendo de tudo”, pensou, “será uma camponesa, a filha de um fazendeiro?”.
– Amor, vamos fazer um lanchinho? – perguntou Zulmira colocando a cabeça para dentro do escritório.
– Obrigado, mas quero ficar aqui mais um pouco e relaxar.
Ele não conseguia desgrudar os olhos do quadro. Começou a imaginar como poderia deixá-lo ainda mais bonito, destacar a linda tela que o hipnotizava. “Preciso redecorar esse lugar”, falou. Já passava das onze da noite e Osvaldo estava tirando os livros de lá para dar mais visibilidade ao quadro, arrastava os móveis fazendo com que a pintura fosse a protagonista do ambiente.
– O que está fazendo aí até tão tarde? Vamos dormir, meu amor.
– Não! – gritou – Ainda não terminei aqui.
– Calma. Só estou falando. Boa noite, então.
…
Entrou a madrugada e o sol estava prestes a nascer. Osvaldo continuava sentado, com as mãos agarradas nos braços da poltrona e olhos fixos no quadro. Sentia que a pintura falava com ele: “Que lugar sem cor, tudo muito branco”. Ele respondeu: “Deixa comigo, vou sair pra comprar tinta”. Esperou um pouco e, já no amanhecer, saiu à procura de uma loja aberta, estava firme na ideia de pintar todo o escritório.
Em frente a tantas opções, ficou na dúvida da cor, pegando várias latas de tintas diferentes, enquanto o vendedor fazia os cálculos da compra. O porta-malas do carro estava abarrotado, teve que abaixar os bancos de trás para conseguir fazer caber toda mercadoria.
– Enzo, vem ajudar – gritou assim que estacionou o carro na garagem de casa.
O garoto olhou incrédulo ao ver tantas latas de tinta.
– Sério que vai usar tudo isso?
– Vou testar pra ver qual fica melhor.
Enzo percebeu as pupilas dilatadas do padrasto, além da vermelhidão incomum que tomava conta de seu rosto. Estava falando rápido, com o maxilar travado, e viu um fio de saliva escorrer pelo lado esquerdo da boca.
– Tudo bem com você? – o garoto perguntou.
– Tudo. Por quê? Tudo sim, cara. Por quê? – disse como se estivesse tomado algum tipo de droga estimulante.
Osvaldo carregou quatro latas de tinta de uma vez, correndo com elas ao escritório. Lá dentro estava Zulmira, limpando a bagunça que ele deixara na madrugada. Ao vê-la, jogou as latas no chão:
– O que você está fazendo? – gritou.
– Calma, só estou arrumando as coisas. Você deixou tudo espalhado.
– Sai daqui já – ele esperneou, enquanto cuspia.
– O que é isso, Osvaldo?
– Não vou falar de novo, sai daqui já, caralho!
– A que horas vai trabalhar?
– Saaaaai! – urrou, colocou a esposa para fora do escritório e trancou a porta.
Foi a primeira vez que Zulmira sentiu medo do marido. Sempre havia sido um ótimo companheiro durante os anos de convivência. Pensou que ele não estivesse num dia bom e foi direto à cozinha iniciar os afazeres da semana.
“Pronto. Agora só estamos você e eu. Comprei muitas tintas. Pode escolher a cor que quiser pra parede”, ele sussurrou ao lado do quadro. Como por telepatia, a resposta foi imediata: “Nossa, será que só mereço isso?”. “Como assim? Trouxe todas as tintas que encontrei”. “Tintas? Ah, achei que me amasse”. “Mas eu te amo, claro. Como quer que eu pinte?”. “Ah… sangue, talvez? Sabe, gosto muito de sangue”. Osvaldo pegou um estilete na gaveta, cortou a palma da mão e passou na parede ao lado da pintura. “Gostou assim?”. “Ah… só isso? Quero que pinte a parede toda”. “Mas não tenho tanto sangue assim. Posso conseguir um animal. Eu mato e pego o sangue dele”. “Ah… um animal? Talvez você não me mereça mesmo”. “Não, meu amor, calma… me diga o que quer”. “Que tal sangue humano?”. “Mas onde vou arrumar tanto sangue?”. “Sabe, não queria te contar… mas sua esposa não gosta de mim… quis me jogar fora hoje”. “Não… como assim? A Zulmira não faria isso”. “Pois acredite, ela tentou. A sorte é que você chegou pra me salvar”. “Sempre… sempre… você é a minha vida”. “Então, quem sabe não me dá o sangue da Zulmira de presente? Claro, se você me quiser por perto ainda”. “O sangue da Zulmira? Mas… aí vou ter que matá-la”. “Ah, meu amor, ela não é tão valiosa quanto eu né?!”.
…
Osvaldo andou de um lado a outro do escritório durante todo o dia. O rastro de suor encharcava o carpete verde. E Zulmira não se atreveu a incomodar o marido no decorrer da tarde. O jantar ficou pronto, Enzo já havia voltado da escola e esperava o padrasto junto com a mãe à mesa.
– Bate lá, Enzo. Talvez ele já esteja mais tranquilo.
O garoto arrastou a cadeira e gritou ao padrasto que o jantar estava servido.
No escritório, Osvaldo não sabia como realizar o desejo do quadro. Ainda tinha alguma força para resistir à persuasão macabra que o objeto exercia sobre ele. “Já vou”, respondeu ao enteado. “Agora é a hora, meu amor. Jante com eles, deixe o menino dormir e me faça feliz: traga o sangue dela pra mim”. Ele secou o rosto com uma toalha, destrancou a porta e se sentou para jantar.
– Meu amor, espero que esteja melhor – Zulmira falou com um sorriso.
– Estou melhor sim. Só tive um mal-estar – disse sem levantar a cabeça.
…
– Que silêncio. Ninguém falou durante todo jantar. Ou a comida está muito boa ou passou um anjo durante a refeição.
– Anjo é o caralho, porra! – Osvaldo gritou como se por reflexo.
– O que é isso, Valdo?
– Desculpa… eu… desculpa… não estou me sentido bem – ele voltou a se trancar no escritório.
– O jantar estava ótimo, mãe.
…
Osvaldo sentado na poltrona… e o quadro o encarando. Sentia-se num mundo encantado, com sensações orgásticas enquanto admirava a pintura. “Vai… realiza meu desejo”, era só o que escutava em eco.
…
Zulmira descia a escada. Estava tudo escuro, inclusive o escritório. “Onde o Valdo está?”, refletiu. Os degraus rangiam a cada passo. Ela, sonada, não percebera que Osvaldo estava atrás da porta da cozinha com uma frigideira na mão. Desferiu um golpe na cabeça da mulher, que desmaiou de imediato.
…
Enzo estranhou que sua mãe não o acordara para ir à escola. Estava atrasado, correu para ir ao banheiro, se arrumar e tentar pegar a segunda aula. Nenhum movimento na casa. No quarto dela não havia ninguém, a cozinha estava do mesmo jeito da noite anterior. Apenas uma luz vinha do escritório. Devagar, ele se aproximou… a porta entreaberta revelava assovios no ritmo de tarantela. Assim que entrou, viu o padrasto com uma brocha na mão, molhando-a numa bacia. A parede perto do quadro estava sendo pintada de vermelho.
– Enzo, querido, pode me ajudar com isso? – Osvaldo falou com um largo sorriso.
O garoto entrou lentamente. Ao olhar para o canto da sala, viu a mãe sentada de olhos abertos com a garganta cortada.
– Calma, eu precisava fazer isso. O quadro pediu… pediu muito… vem aqui… me ajuda – Osvaldo se explicou, como se aquilo fosse a coisa mais normal do mundo.
Enzo correu, tentou abrir a porta da frente. Estava trancada e a chave não estava na fechadura. Foi até a janela, quando a forçou sentiu ser puxado pelas pernas, bateu a cabeça no chão e desmaiou.
…
–Ah, você acordou. Tem que me ajudar com a pintura. Fica bonzinho, hein?!
O garoto estava amarrado na cadeira, se mexia para tentar se livrar dos fios que o envolvia, sem nenhum sucesso.
– Por que, Valdo? Ela te amava tanto… e eu também…
“Ele está tentando te jogar contra mim, amor, não deixa”, o quadro o persuadia. “Eu sei, eu sei… calma, ele vai ajudar… sei que vai”, Osvaldo respondeu em voz alta. Enzo logo viu o estado hipnótico no qual o padrasto se encontrava, coçava a cabeça e piscava compulsivamente, a voz também estava diferente, andava de um lado a outro com a brocha na mão. “Vamos, pode continuar a pintura, a parede está ficando linda”. “Que bom que está gostando, vai te destacar”. “Só não deixe o garoto interferir, ele também não gosta de mim”. “O Enzo é um bom garoto”, Osvaldo respondeu olhando ao enteado. “Talvez seja bom pegar mais um pouco de sangue”. “Tem bastante aqui, consigo pintar todo escritório”. “Mas não é suficiente pra casa toda, meu amor”. Osvaldo parou, sentou no chão, coçava o olho lambuzando o rosto com o sangue de Zulmira. Enzo percebeu que o padrasto falava com o quadro, constatou a confusão mental que o abatia, “alguma possessão, feitiço?”, se perguntou.
– Valdo, olha pra mim.
O padrasto estava com as mãos sobre os olhos, balançando a cabeça.
– Olha pra mim, Valdo. Sou eu, o Enzo, seu enteado. Eu te amo – o garoto olhava de relance ao corpo da mãe caído como um saco de esterco. – Olha pra minha mãe… ela está morta.
Osvaldo continuava fazendo sinal de negativo com a cabeça, se recusando a olhar.
– Valdo – ele gritou – olha pra mim já!
Ele foi levantando a cabeça, tirou as mãos dos olhos, balbuciou palavras indecifráveis… acabou encarando Enzo.
– Você é um homem bom… foi você quem me criou, me deu carinho e amor. Não precisa machucar mais ninguém. Olha o que aconteceu à sua mulher, minha mãe. Pode me desamarrar pra gente conversar melhor?
– Ela não deixa, Enzo, está na minha cabeça – Osvaldo ficava cada vez mais vermelho, lágrimas saíam de seus olhos.
– Você é forte, sei que é, só você manda no seu corpo e na sua cabeça, manda ela sair daí.
– Eu não consigo – ele soluçava – não consigo.
“Está querendo se livrar de mim, amor? Esse menino está fazendo sua cabeça”. Osvaldo olhou para o corpo de Zulmira. “Olha o que eu fiz com ela, meu Deus”. “Eu sou mais importante, a gente falou sobre isso”. “ME DEIXA EM PAZ”, ele gritou, colocando as mãos sobre os ouvidos, “me deixa em paz, me deixa em paz, me deixa em paz”, o pranto tomava conta de si.
– Me desamarra. Vamos conversar.
Osvaldo foi acalmando, conseguia aos poucos ouvir os próprios pensamentos, a consciência estava dando sinais de vida. Ele pegou uma tesoura e cortou os fios aos poucos, soltando o enteado.
– Isso, estamos juntos, você vai se livrar disso. Vamos sair daqui – Enzo pegou na mão de Osvaldo e o levou até a cozinha. – Eu vou te ajudar, Valdo, você tem que…
Enzo fora golpeado na cabeça.
…
Os olhos do garoto abriram lentamente. Aos poucos foi se recuperando após a desorientação total proveniente da pancada. Viu o padrasto esfregar o rosto e balançar a cabeça. “O que eu faço agora, o que eu faço”, Osvaldo balbuciava. “Acaba com ele, meu amor”, o quadro respondia.
– Valdo, por favor, chega disso – o garoto passou a chorar.
– Calado. Fica quieto. Preciso pensar – o padrasto se coçava de maneira obsessiva.
– Esse maldito quadro está te manipulando, coloca fogo nele, acaba com isso – Enzo implorava.
– Fogo… fogo… onde acho fogo? Isso, fogo. É uma boa ideia, fogo – disse, passando a sussurrar palavras sem sentido.
Osvaldo saiu do escritório cambaleando. Enzo continuava caído, sem forças para se levantar, sua cabeça doía. Logo o padrasto voltou com um litro de álcool na mão.
– Isso, Valdo, toca fogo nesse maldito quadro.
O padrasto parou, olhou bem à pintura, parecia insistir na conversa por pensamento. De repente mudou a feição, arregalou os olhos, mirou o enteado e passou a embeber o carpete com o álcool. O garoto tentou se arrastar em direção à porta, mas foi atingido com um chute no rosto e voltou a desmaiar. Osvaldo pegou o quadro, saiu de casa e jogou um fósforo aceso no rastro de álcool. O fogo, rapidamente, tomou conta do lugar e o vento só fazia espalhar as chamas.
…
JORNAL HORA A HORA: “Casa em bairro de classe média pega fogo. Corpo carbonizado foi encontrado”.
Osvaldo estava morando na rua há meses, dormia agarrado no quadro e tinha pesadelos constantes. Sonhava com Zulmira, com Enzo, com as voltas de bicicleta… e com muito sangue… toda noite, muito sangue.
…
– Quer um sorvete, Pati? O papai vai buscar pra você – o homem de tênis branco e camisa polo para dentro dos shorts aproveitava o momento em família com a filha e a mulher nas ruas de Embu das Artes.
– Ei, senhor? – ele escutou uma voz vinda do pequeno beco. – Olhe minha arte, eu imploro – pediu a figura coberta por sacos plásticos, com o rosto ferido e aspecto mendicante.
– Olá, meu amigo. O que você está vendendo? – indagou.
– Um quadro – o indigente mostrou a pintura da mulher branca, com lenço vermelho no cabelo e tranças louras jogadas para frente.
O homem se encantou de imediato.
– Nossa, que coisa mais linda. Quanto você quer por ela?
Uma voz grave surgiu por detrás do homem:
– Nada, sai fora, ela já tem dono – era Enzo, com o corpo deformado pelas queimaduras.
– Perdão, eu não queria… perdão… – o homem se afastou de imediato.
– Então, Valdo, tentou me queimar vivo né?! – Enzo passou a faca no pescoço de Osvaldo, o indigente. Tomou o quadro por debaixo do braço e partiu. O corpo do padrasto foi caindo aos poucos, enquanto a calçada era estampada com um intenso vermelho-sangue.