RUÍDOS DO SILÊNCIO

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Ruídos do silêncio

Não consigo me lembrar como cheguei na casa, estava dopada e sonolenta, mas a imagem da fachada não sai da minha cabeça, portão preto e parede vermelha, quando entrei, depois de ser arrancada do carro e arrastada pelos braços, só pude perceber o ambiente abafado antes de ser jogada nesse cubículo, desde então, só escuto os ruídos da minha mente no silêncio… respiro uma vez, outra vez, outra vez… o quarto escuro, aquele colchão fétido no chão imundo, as mãos amarradas e a umidade nas paredes causam uma tortura interminável, aqueles sonhos de menina, a passarela, as fotos, os desfiles, não eram nem de longe parecidos com isso, os dias vão passando e não há mais lágrimas, elas se cansaram de brotar dos meus olhos, minha mãe me avisou e eu pensei que fosse inveja, agora cogito ter sido pressentimento, não era para eu vir, não era meu caminho, claro, não existe atalho, como fui burra, me deixei enganar por um encantador de serpentes, começo a lembrar da infância, das bonecas, das gincanas… respiro uma vez, outra vez, outra vez… volto à adolescência, namorados, conversas divertidas com as amigas, festas, minha mente chega ao dia da viagem, quantas meninas embarcaram juntas, quantos sonhos felizes, de repente nua, sem dinheiro, sem a correntinha da vovó, sem passaporte, sem a foto do afilhado, tratada como prostituta, violentada por tantas vezes, por tantos homens, meu corpo dolorido coça e o cansaço já me abateu faz tempo, o cheiro de sêmen deixado por aqueles que me visitam dia após dia me enjoa, perdi as contas de quantas vezes vomitei, desidratada, chego a beber minha própria urina, escuto os covardes rirem, são os únicos ruídos além daqueles que se passam no silêncio da minha cabeça, eles sentem prazer no tráfico de mulheres, enriquecem com sexo forçado, e eu trancada nessa maldita casa que me sufoca, nesse quarto cruel que me causa claustrofobia… respiro uma vez, outra vez, outra vez… não sei como agir, acabou, eles venceram, não adianta fazer com que as minhas unhas sangrem mais, as paredes dessa casa macabra não se abrirão, ouço cada vez menos os ruídos silenciosos vindos da pouca luz que meu cérebro ainda irradia… respiro uma vez, outra vez, outra vez… espancada, suja de corpo e alma, peço a Deus que me leve, se Ele existir, nesse momento estou convicta de que não, ou talvez apenas Ele não tenha a chave da porta dessa casa cruciante, de repente, em súbito impulso, meu olhar se lança à latrina de ferro, sua ponta afiada pelo desgaste do tempo me seduz, vou escapar da casa, de um jeito ou de outro, aquela ponta vai ser o atalho para fora, para o outro mundo, e, de fato, cortou feito navalha, no comprimento do punho, o sangue grosso desce tão rápido que minha consciência vai se esvaindo… respiro uma vez, outra vez, outra vez… o silêncio é quebrado, de longe ouço o estouro da porta, o barulho dos tiros, os gritos de ordem, a casa amaldiçoada finalmente se abriu, a polícia encontrou o cativeiro, a quadrilha foi desbaratada… mas eu já estava liberta, já não mais respirava… nem uma vez… os canalhas não escaparão de mim, só espero a noite chegar, no silêncio, para assombrá-los e matá-los lentamente nos sonhos, assim como eles fizeram com os meus.

 

*nota

Pedro Fleury

“Retome o hábito da leitura. Contos impactantes. Textos com humor. Escrita de qualidade.”

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