Ninguém a conhecia como Maria do Carmo. Ela era Carmita, aquela que encantava pelo bom humor, sorriso fácil e vaidade com a beleza. Cuidar da jardinagem, nadar, praticar ioga e tomar uma bela caipirinha na praia eram suas paixões, além da família, é claro. Os lapsos nas frases eram sua marca registrada, sempre seguidos de “é que ando meio esquecida”, dizia sorrindo. Sua generosidade era reconhecida, mão aberta com os mais necessitados e com quem mais pedisse alguma ajuda. Minha desconfiança se acentuou quando, num fim de ano, distribuiu cheques gordos às atendentes do cabeleireiro. Não só gordos, poderia classificá-los como obesos. A dona do salão percebeu que não eram meros presentes de Natal, talvez Carmita tivesse se enganado ao preenchê-los, por isso logo foi devolvê-los à família. Dias depois, Carmita apanhou a bolsa com apenas o batom dentro, pegou o carro vestindo pijama e seguiu para comprar chocolates na Kopenhagen, sem dinheiro, cartão, memória, noção… bateu o desespero, onde estou?, o que estou fazendo?, alguém me ajude! Esses e outros acontecimentos fecharam o diagnóstico: dona Carmita estava com Alzheimer. Os lapsos nas frases acabaram por se tornar intermináveis, perguntas repetidas de novo, de novo e de novo. O bom humor foi se transformando em apatia, o sorriso foi perdendo os dentes e a vaidade foi se apagando. A generosidade se alongou até onde deu. Voltou a ser criança, quero o papai, vou brincar de pular corda, vou comer doces antes do almoço. Demorou alguns anos e ela se foi, o câncer a levou. Voltou para o lado da sua grande paixão, o Lu, seu companheiro por mais de quarenta e cinco anos. Definitivamente Deus existe e provou criando Carmita. Hoje acordei pensando nela… que falta faz nessa terra.