SEGREDO DAQUELA NOITE

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Segredo

Tentei fugir de todos os modos, mas ela me perseguia, estava obcecada por mim, me cercava nas ruas, em casa e até na igreja, onde me refugiava quando não havia mais esconderijos possíveis.

Li tantos livros buscando uma forma de ficar invisível aos seus olhos e ela apenas ria me observando de longe, como se debochasse do meu inevitável destino, enquanto o desespero tomava conta do meu interior.

Eu sentia sua presença, o dia se fazia noite e o certo se tornava errado, ela tem o poder de subverter a lógica e escravizar nossos sentidos. No fundo, sempre soube que suas mãos me agarrariam, cedo ou tarde… porém, como dizem, somos donos do próprio destino, haveria de mudá-lo, ao menos adiá-lo.

Infortunadamente ela me alcançaria justo naquele momento em que meu neto estava para chegar a este mundo, eu não teria sequer a oportunidade de ver seus olhos. Seriam azuis como os meus? Ou verdes como os da mãe?

Apostei no tudo ou nada. Chamei-a para se sentar na cozinha e tomar um café. Pediu sem açúcar, o mais amargo possível. Estava desarmada, disposta a negociar. Talvez um pouco de álcool amoleceria a obstinação. Conhaque? Ela dispensou na hora, aguardava tão-somente minha proposta.

O ambiente esfriava como se estivéssemos na neve, o café ficou imprestável em menos de um minuto e ela batia a ponta dos dedos na mesa, entediada, pronta para me levar se eu não despertasse seu interesse num desfecho bom para ambos.

Pedi alguns meses, seis, não ver meu neto era inegociável… mas é péssimo negociar sem barganha… óbvio que ela queria uma bela contrapartida.

Sugeri colocar uma gota do meu sangue todas as noites na janela durante o prazo de sobrevida… ela se fortaleceria e não me deixaria escapar quando chegasse a data final.

O não foi peremptório! Seria levado naquela noite mesmo. Não tem nenhuma compaixão?, questionei-a. Você já viveu muito mais do que deveria, seu tempo acabou, retrucou. Vamos brindar, então, é meu último desejo, supliquei. Só bebo aquilo que seiva a vida, respondeu.

Abri a geladeira para verificar o que poderia ter na minha casa que seivaria uma vida. Sorri ao ver o litro de leite, minha avó dizia que leite com manga mata… comentei sobre isso sorrindo, porém seu humor era nulo.

Engraçado, ela procurando algo bom para morte e eu me deparo logo com o leite, que nutre a vida… especialmente dos recém-nascidos… a ideia me veio: Dona Morte, tenho outra proposta, me leve agora e eu volto no corpo do meu neto.

Não me lembrei do segredo daquela noite… até agora, quando ela veio me visitar de novo, oitenta e sete anos depois… foi recebida com um grande abraço, sem tentativa de fuga ou o desespero de outrora.

Com gosto vou te fazer companhia, dona Morte, quem sabe dessa vez o café não esfrie tão rápido.

Pedro Fleury

“Retome o hábito da leitura. Contos impactantes. Textos com humor. Escrita de qualidade.”

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