TEM ALGUÉM AQUI

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Tem alguém

Geralda fazia um bolo para seu aniversário de oitenta e dois anos. Triplicou a receita da mãe para render dois quilos e meio da delícia de chocolate… fora os docinhos, beijinho, bicho-de-pé e seu imbatível brigadeiro. A festinha em casa estaria lotada, filhos, netos e bisnetos, vizinhos, amigos, pelas contas umas trinta pessoas.

Um barulho na porta. “Quem está aí?”, perguntou. Nada de resposta! “Marinho, é você?”. Geralda foi andando até a frente da casa. Não havia ninguém. Quando voltou, viu o vulto de um homem passar pela janela da sala. “Pois não?”, falou em alto tom. Foi seguindo até a porta do jardim, nada ali.

Voltou à sua atividade na cozinha, pensando na festa. Mario, seu filho, Leonor, a filha. Quatro netos grandes e dois bisnetos. “Que benção!”. “Mamãe?”, ouviu vindo da parte de cima da casa. “Ué! Ninguém avisou que viria. Leonor?”. Geralda subiu as escadas se escorando no corrimão. Não tinha a mesma disposição de trinta anos atrás. “Vem aqui, mamãe”, a voz continuava, vinha do quarto de hóspedes. Ao abrir a porta se deparou com o vulto entrando no armário. Ela se aproximou e abriu com receio as duas portas, puxando-as para frente. Apenas as roupas penduradas. Afastou-as bruscamente. Ninguém ali. Caiu uma caixa de sapatos no chão. Fotos de família. Geralda se sentou e viu uma a uma. Quantos momentos felizes, abraços e sorrisos. Mario de óculos escuros, tinha uns oito anos, e Leonor, de seis, apenas com a parte de baixo do biquini tomando picolé. “Férias na Praia Grande”, ela riu.

Escutou um barulho de vidro quebrando na cozinha. Desceu correndo, na medida do possível, o joelho pegou um pouco. “Tem alguém aqui? Responda já!”. Viu uma tigela espatifada no chão. “Venha me enfrentar!”. A porta da geladeira estava aberta. “Não tem nada pra roubar aqui. Quer comida, é?! Pode levar”. Escutou a TV ligada. “O jogo de hoje é quem conhece melhor a família”, dizia o programa, “quem sabe mais sobre os hábitos uns dos outros”. Geralda se sentou no sofá, pegou o controle remoto, estava assustada com os fenômenos acontecendo em sua casa. “Tem alguém aqui?”, gritou mais uma vez. Ficou alguns minutos vendo o programa. A família se abraçando, os gestos de carinhos. “Que saudade dos meus, ainda bem que amanhã tem festinha”.

Num virar de cabeça, viu um homem alto, de barba cerrada, olhos esbugalhados, com uma grande faca na mão. “Ai, meu Deus!”, ela exclamou. Levantou-se como pôde, usou sua pouca disposição para correr escada acima, sua respiração ofegava enquanto via o maníaco indo atrás dela lentamente. Geralda se trancou em seu quarto, segurando a porta com as costas.

Batidas incessantes. Geralda chorava de desespero. “Ele vai me matar, socorro!”, gritava. Foi ao telefone de disco em sua cabeceira. “Emergência!”. “Tem alguém aqui”. “Ok, senhora, mantenha a calma, onde exatamente a senhora está?”. Geralda passou o endereço. “Mande bastante reforço, muitos policiais, o homem está armado com uma faca enorme”. “Sim, senhora, estou mandando a viatura imediatamente”. As batidas na porta do quarto continuaram durante minutos. “Socorro! Alguém me ajude!”, se desesperou.

Um silêncio se fez presente. A campainha tocou. “Polícia! Dona Geralda, é o soldado Soares, atenda a porta!”. Ela desceu com cautela, degrau após degrau, não via mais sinal do facínora. Geralda destrancou a porta da frente. “Dona Geralda, de novo tinha um homem com uma faca aí?”. “Sim, policial, ele voltou. Estou apavorada!”. Ele deu um longo abraço nela. “Dona Geralda, é o quinto chamado nesse mês”. “Não, não, ele estava aqui, eu juro”. “Não vai me dizer que a senhora estava fazendo bolo de aniversário e esperando a família mais uma vez?!”. “Como sabe? Aliás, está convidado”. “Ok, ok. Vamos ter essa conversa de novo. Estamos em agosto, a senhora faz aniversário em fevereiro. Seus filhos não virão, porque a senhora não tem filhos”. “Ah, não? Puxa, havia me esquecido. Não quer entrar e tomar chá com um bolinho de chocolate?”.

Geralda preparou todos os doces à espera da família. Acabou quebrando uma travessa. Abriu a geladeira e se distraiu quando o programa de televisão começou. Sentou-se um pouco para assistir. Depois foi até o quarto de hóspedes pegar um chale para abrigar as costas. Viu umas fotos de quando era garota com um primo. Ele de óculos escuros e ela apenas com a parte de baixo do biquini tomando picolé.

O homem com a faca de vez em quando aparecia na casa e o soldado Soares ia acudi-la, tomava um chá e comia seu delicioso bolo. E todo dia Geralda continuava tentando afastar o maior inimigo que a atormentava, a solidão.

Pedro Fleury

“Retome o hábito da leitura. Contos impactantes. Textos com humor. Escrita de qualidade.”

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