Leontino desce do taxi e se apoia na bengala. Apesar do calor intenso, ele veste calça de veludo marrom e blazer de cashmere azul marinho. Empurra a porta do prédio, sem aguardar o porteiro liberá-la. “Pois não?”, pergunta o funcionário pelo interfone. “Abre. Minha filha mora aqui”, responde com impaciência. O rapaz é novo, mas percebe tanta convicção naquela ordem que não se atreve a barrá-lo. O velho senhor passa pigarreando pela mesa do porteiro. Segue em ritmo acelerado, na medida do possível, até o elevador. Logo que aperta o botão, pega um cigarro no bolso de dentro do blazer, mas as mãos não são tão firmes como antigamente, acaba derrubando-o no chão. Abaixa-se em reflexo e os gases saem inevitavelmente. Ele nem liga, pigarreia mais uma vez e balança a calça a fim de dissipá-los.
Sobe ao décimo andar. A porta do elevador é pesada, se atrapalha para sair, mas consegue chegar em frente ao apartamento cento e dois. Leontino segura a campainha por mais de cinco segundos até que a porta se abre. “Papai, pra quê tanto escândalo?”, a filha o repreende. “Não sabia se você iria ouvir”. “Bom, desse jeito eu e todos os vizinhos ouvimos né?!”. Ele beija a bochecha a moça, alisa o seu braço e entra. Vai andando até o sofá enquanto o poodle pula em sua perna pedindo carinho. “Passa, passa”, diz o velho enxotando o cão. “Vovô”, o pequeno Joca sai correndo para abraçá-lo. “Oi, filhinho”. “Tenho um desenho pra te mostrar”. “Que bom… Maria Luiza, traga um uísque pro seu pai”, ele pigarreia antes de acender o cigarro. “Olha, vovô, desenhei a mamãe, o papai, você e o Dudu”. “Escuta, mas quem é Dudu?”. “O cachorrinho, oras”. “Ah, bom, o cachorrinho… Maria Luiza, cadê meu copo?”. “Já vai, papai”. Leontino percebe a leve distração do neto e acaba flatulando de novo, dessa vez de forma consciente. O barulho, porém, é alto. Ele pigarreia e dissimula. “Que tosse seca”. O garoto continua brincando de carrinho, bem no pé do avô. “Pronto, papai, uísque com uma pedra de gelo” sorri a filha. “Muito amável”, responde.
A filha reclama das contas, a vida está muito cara, e Zé Carlos, seu marido, não anda bem no ramo de corretagem. O velho fuma um atrás do outro. Esquece que está fumando um e acende outro enquanto o primeiro repousa no cinzeiro, deixando-o amarelado. Maria Luiza vai à cozinha pegar azeitonas. Leontino aproveita a ocasião. Solta mais um. Arrasta a mesa de centro para abafar o ruído estrondoso. “Vovô, vamos tomar guaraná?”. O velho fala ao menino: “Filhinho, o vovô prefere cair com fratura exposta em cinco lugares a tomar guaraná”. O neto nem entende direito o que ele fala, começa a desenhar com giz de cera. Maria Luiza volta à sala. “Então, papai, como eu estava dizendo…”. Continua a ladainha das contas. Durante o desabafo dela, Leontino fica com a cabeça longe, lembra que à noite vai jogar cacheta na casa da Marieta, precisa caprichar no perfume, tenta há anos levá-la para cama. E ela sempre dá a mesma desculpa “prometi ao Viriato que seria só dele”. Leontino não perde a esperança, afinal, a prótese peniana está em dia, precisa usufruir. “…por isso não sei mais o que fazer”, conclui a filha. “Essas coisas precisam ser administradas, querida”, ele responde, “tem mais um uísque aí?”. Maria Luiza pega o copo e sai. Leontino então solta o derradeiro. Ela volta e não aguenta. “Que cheiro, meu Deus!”. Leontino aponta disfarçadamente ao garoto. “É, filha, aqui não está fácil”. O neto olha à mãe e fala com toda a calma. “Estava melhor, mamãe, até o vovô cagar no sofá”.
